É inegável quer a grandeza antropológica, quer a repercussão cultural e civilizacional que a viagem de circunavegação efetuada pela armada inicialmente dirigida por Fernão de Magalhães teve para o mundo. É mesmo com esta viagem que se pode começar a falar de “mundo” em sentido moderno, pois foi ela que acabou com as dúvidas sobre o concreto da rotundidade da Terra.
A Terra é um espaço infinito – é esférico – auto-contido e macroscopicamente com a aparência de finitude, pois até se lhe pode dar “uma volta completa”. O universo em seu redor segue-lhe a geometria e é, também ele, pensável como uma esfera, esta sem fim à vista.
A consequência cultural geral desta experiência científica – ainda que não propositada como tal – é imensa, sobretudo quanto ao sentido dos limites da grandeza da Terra e do universo. Não mais há uma Terra plana, infinita como tal ou terminada por abismos infinitos.
Não mais há um mundo com alto e baixo, pois a esfera não tem “dois lados”, tem-nos infinitos. Em termos de consequências, é ao nível político que a viagem concreta iniciada sob o comando de Magalhães e terminada sob o comando de Elcano tem mais impacto.
É com ela que se inaugura verdadeiramente uma globalização real, concreta.
Este movimento tem como glorioso antecedente o avanço de Alexandre Magno em busca da expansão do logos do seu mundo; teve em Henrique, o Navegador, o iniciador do ato de saída atlântica da Europa, seguindo um fito idêntico.
No entanto, uma globalização implica a existência de um globo e este só foi mostrado como real por Magalhães e Elcano, só começou a ser construído geopoliticamente após esta mostração. Depois desta viagem, não há já uma expansão tentativa, procurando algo previamente especulado em mito, história ou na sua imbricação, mas a certeza de uma realidade definidora de isso que há para descobrir, quiçá conquistar.
Ora, é nesta tensão entre descoberta e conquista, entre contemplação do novo e sua posse, que se joga quer o fundamental da empresa – de todas aquelas de que esta é símbolo e corolário – quer das consequências da mesma.
O impulso que originou esta viagem é de origem política e, no seio da política, de poder. Trata-se de um ato cujo interesse motor é o domínio: que Reino tem direito a possuir o quê? Todo o dinamismo de posse é um dinamismo perverso; logo, a origem matriz desta viagem é perversa. Não interessa o contexto histórico: a posse é sempre ilusória, seja em que tempo for, pois ninguém possui coisa alguma: ou se é ou se não é.
Possuir não é ser. O ser humano é o que é em seu ser e nem isso é posse sua, pois nada pode fazer para garantir tal: de cada vez que adormecemos, tudo se perde no negro da noite escura em que mergulhamos – o que é que se possui, então?
Associado à posse, todo um conjunto perverso se seguiu a esta viagem, cujas repercussões ainda hoje se fazem notar, em termos de exploração de terras e gentes. Todavia, nem tudo foi perverso: precisamente, tudo o que foi ato de amor na viagem e como sua consequência foi e é um bem. Mas não foi o amor, isto é, o ato no sentido do bem de alguém que não o próprio, que fundamentou os atos políticos desta viagem. Foi a posse.
Em certo sentido, no sentido do amor, a viagem de Magalhães e Elcano ainda está quase toda por fazer, como início da globalização, não da posse, mas do amor, do serviço ao bem-comum, único precioso, único eldorado antropológico e ético; o mais é ilusão.
Releva-se a coragem destes homens, fundamental como exemplo para que tal nova viagem, novíssima viagem, possa ser encetada. Então, homenageamos tal coragem e desejamos boa viagem à descoberta global do amor e do bem-comum.
Foto da capa: Tabula Magellanica – Estreito de Magalhães, Willem Blaeu, 1653.