LISTEN, um filme para ser escutado nas entranhas

Podemos entrar neste filme pela lente partida da máquina fotográfica a fingir de Lu, a filha surda-muda daquela família. Uma lente que faz lembrar as teias onde as aranhas apanham, prendem e comem outros insectos. É disso que se trata neste filme: o Estado, no seu suposto zelo de cuidar das crianças melhor do que a família, cega e violentamente, vigia, julga e retira os filhos aos pais.

O filme é realizado com magnífica mestria pela portuguesa Ana Rocha de Sousa – é mesmo a sua primeira longa-metragem – mas passa-se em Inglaterra. Diante de nós, vemos uma família de emigrantes portugueses, pai e mãe, com três filhos, um ainda bebé, um rapaz já adolescente e a menina surda-muda que acaba por ser, na sua mudez, o grito que denuncia a teia kafkiana que percorre todo o filme. Uma família a passar grandes dificuldades económicas, apesar de a mãe ir trabalhando, mas sobretudo porque o pai deve ter sido despedido e não lhe pagaram o que deviam. Essa sua condição que os obrigara a pedir ajuda para comprar o aparelho auditivo acaba por levar a que esta família seja sinalizada pela Segurança Social. E quando aparecem umas manchas/marcas no corpo de Lu tudo se precipita e os filhos são mesmo retirados.

E no entanto, aquela era uma família bonita, os pais eram cuidadosos e ternos, os irmãos cuidavam uns dos outros. Só que isso não era visto – nem perguntado ou acreditado – pelos burocratas sociais. Só nós, espectadores, sabemos isso. Daí que o filme faça crescer em nós uma revolta contra um Estado assim totalitário e uma empatia – ainda que impotente – para com aquela família literalmente devorada pela teia.

Listen, de Ana Rocha de Sousa, Drama, M/12, POR, 2020.
Listen, de Ana Rocha de Sousa, Drama, M/12, POR, 2020.

Mas a revolta não é só nossa. Há uma antiga funcionária que conhece bem os meandros do sistema e agora dedica a sua vida a ajudar famílias nesta situação. É ela, juntamente com a sua organização clandestina, que vai ajudar estes pais a recuperar os seus dois filhos mais velhos. Quando finalmente conseguem ‘fugir’ para Portugal, o bebé já tinha sido entregue para adopção a outra família. Como será para uma mãe e um pai e uns irmãos ter de deixar para trás um filho e um irmão? Haverá coisa mais desumana? E esta, infelizmente, não é uma questão retórica.

Nascido a partir de uma notícia de jornal que contava como uma mãe portuguesa a quem os Serviços Sociais britânicos retiraram um bebé de dias, Listen é um filme comovente, exemplarmente sóbrio, inteligente e que nos deixa perguntas muito pertinentes. Sim, é verdade, em Inglaterra como em Portugal, mas também noutros países, há famílias problemáticas e mesmo incapazes de cuidar bem dos seus filhos. Mas em nome de uma lei e da rigidez com que é interpretada não faltam situações como a que é contada no filme. Seria possível, seguramente em muitos casos um maior e melhor apoio à família, o que lhe permitiria continuar a ser e crescer como família. Mas o Estado ‘nem sempre é de confiança’.

Falta apenas acrescentar – para além do convite a ‘escutar’ o filme – que os atores (Lúcia Moniz, Ruben Garcia, Maisie Sly…) são muito convincentes e eficazes, e que a realizadora se insere felizmente na escola inglesa de Ken Loach ou Mike Leigh (de quem foi aluna).
Filme perturbante, de combate, universal.

Listen, de Ana Rocha de Sousa, Drama, M/12, POR, 2020.

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