Lisboa de Santo António

Em junho, Lisboa transfigura-se para festejar o Santo António. É o mês das festas dos Santos populares: Santo António a 13 de junho, São João a 24 e São Pedro a 29 de junho.
Durante todo o mês, a festa faz-se sobretudo nas ruas, com os arraiais populares um pouco por toda a cidade, os bairros enfeitados, os retiros com música e sardinhas assadas, que coexistem com os casamentos de Santo António, a 12 de junho, as festas religiosas da trezena a Santo António e da grande procissão que percorre o bairro de Alfama, a 13 de junho. 

São tradições muito antigas que se enraizaram ao longo dos séculos e que permitiram criar uma relação especial e muito próxima com o Santo que aqui nasceu. Santo António é visto quase como mais um membro da família, tratado com uma informalidade por vezes desconcertante. É o santo que desceu do altar e que vive com as pessoas, as suas angústias e as suas alegrias. Por isso é evocado nas mais diversas situações, destacando-se como o protetor das famílias, das casas e das pessoas, o santo dos objetos perdidos e, sobretudo, desde o século XIX, o santo casamenteiro.

Cruz riscada na pedra por Santo António ainda criança, para fugir às tentações do demónio. Escada da Torre, Sé Catedral, Lisboa. Foto © Leonor Alvim.
Cruz riscada na pedra por Santo António ainda criança, para fugir às tentações do demónio. Escada da Torre, Sé Catedral, Lisboa. Foto © Leonor Alvim.

Mas esta percepção superficial manifesta uma profunda devoção, exteriorizada pela omnipresença de Santo António em Lisboa, que o tornou o padroeiro principal da cidade. Foi em Lisboa que nasceu a 15 de agosto de 1191, numa casa em frente à Sé Catedral, segundo uma tradição que reforça a relação do Santo com Nossa Senhora.

Recebeu o nome de batismo de Fernando e a Sé Catedral ainda ostenta a pia onde foi batizado, assim como uma cruz que Santo António, então Menino do Coro, fez na parede de acesso à torre para se proteger do demónio, e que é considerado um dos seus primeiros milagres.

Fernando de Bulhões vai continuar a sua formação académica no Mosteiro de São Vicente de Fora, onde se tornou Cónego Regrante de Santo Agostinho entre 1209 e 1211.

Santo António Menino do Coro, Séc. XVIII-XIX, Sacristia da Sé Catedral, Lisboa. Foto © Leonor Alvim.
Santo António Menino do Coro, Séc. XVIII-XIX, Sacristia da Sé Catedral, Lisboa. Foto © Leonor Alvim.
Santo António Cónego Regrante de Santo Agostinho, Igreja e antigo Convento do Grilo, atual Igreja Paroquial de São Bartolomeu do Beato, Lisboa.
Santo António Cónego Regrante de Santo Agostinho, Igreja e antigo Convento do Grilo, atual Igreja Paroquial de São Bartolomeu do Beato, Lisboa.

Ainda hoje se pode visitar no mosteiro uma capela erguida no local que foi a sua cela, localizada por trás do altar dedicado a Santo António na igreja do mosteiro de São Vicente, e onde está a sua imagem com hábito crúzio. Aliás, podemos encontrar a imagem de Santo António como Menino do Coro ou como Cónego Regrante de Santo Agostinho nalgumas igrejas de Lisboa, pois foi com esses hábitos que viveu nesta cidade. É também nesta capela em São Vicente de Fora que se encontra uma lápide indicando que aí estão os restos mortais da mãe de Santo António.

Partida de Santo António para Marrocos. Painel de Azulejos, Francisco Jorge da Costa (act. 1780-1796), c. 1780, Igreja do Vale de Santo António. Foto © Marc Gulbenkian.
Partida de Santo António para Marrocos. Painel de Azulejos, Francisco Jorge da Costa (act. 1780-1796), c. 1780, Igreja do Vale de Santo António. Foto © Marc Gulbenkian.

Em 1211/1212 pede para ser transferido para Coimbra para o mosteiro de Santa Cruz e só voltará a Lisboa em 1220, já franciscano e com o nome de António, na sua viagem para Marrocos. Em memória da sua partida ergueu-se a Capela do Vale de Santo António, na rua com o mesmo nome, que ostenta vários painéis de azulejos com os principais milagres que lhe são atribuídos, destacando-se o único painel conhecido representando o embarque de Santo António para Marrocos.  

A casa onde Santo António nasceu desde cedo foi tornada propriedade da Câmara Municipal de Lisboa que aí estabeleceu o Senado da cidade até 1753 e onde construiu uma capela, dando continuidade à devoção que sempre existiu nesse local. No seguimento do desejo expresso por El-Rei D. João II, por volta de 1496, D. Manuel I mandou demolir a capela e construir uma igreja, designada a partir de então como Real Casa de Santo António, remodelada mais tarde por ação de El-Rei D. João V.

A igreja será destruída pelo grande terramoto de 1755, salvando-se apenas o altar-mor e a imagem de Santo António. As esmolas recolhidas em Lisboa e por todo o país, permitiram erguer a atual igreja.

Diz a tradição que as crianças da cidade também quiseram participar na sua reconstrução e começaram a erguer pequenos tronos (altares) à porta das suas casas durante as festas de Santo António, pedindo “um tostãozinho para o Santo António”, tradição que permanece até aos dias de hoje.

Trono de Santo António (2019) em Lisboa. Foto © Nuno Gonçalves.
Trono de Santo António (2019) em Lisboa. Foto © Nuno Gonçalves.

Depois do terramoto de 1755, Santo António surge como o protetor de Lisboa e a sua imagem será colocada nas principais entradas da cidade e vias de acesso. Permanecem ainda vários vestígios, como o topónimo rua Milagres de Santo António (no local da antiga porta da Alfofa) ou o altar de Santo António na igreja do Loreto (ou Igreja dos Italianos) no Chiado, que incorporou o nicho de Santo António que existia nas Portas de Santa Catarina. 

Painel de Azulejos, autor desconhecido, c. 1790. Museu da Cidade, MC.AZU.5. Originalmente encontrava-se colocado sobre o lintel da porta principal de edifício na Travessa das Fiandeiras, nº 10, Freguesia da Ajuda, em Lisboa. © José Avelar/Museu de Lisboa.
Painel de Azulejos, autor desconhecido, c. 1790. Museu da Cidade, MC.AZU.5. Originalmente encontrava-se colocado sobre o lintel da porta principal de edifício na Travessa das Fiandeiras, nº 10, Freguesia da Ajuda, em Lisboa. © José Avelar/Museu de Lisboa.

Presença significativa nas ruas de Lisboa e demonstração desta proteção de Santo António à cidade, às casas e às famílias, são os mais de 300 registos de azulejos colocados nas fachadas dos edifícios, prática que se generalizou no séc. XVIII e que se estende até aos dias hoje. 

A devoção de Lisboa a Santo António repercute-se ainda nos inúmeros milagres que lhe são atribuídos e que têm esta cidade como pano de fundo, como que a não deixar esquecer que foi aqui que Santo António nasceu.

Assim, e para além dos milagres da infância de Santo António, em Lisboa, temos o episódio do seu sobrinho que se afogou no rio Tejo e que sua mãe, Feliciana Martins, suplicou ao irmão para que salvasse o seu sobrinho Aparício, prometendo-lhe entregá-lo à ordem dos frades menores.

E será o já frei Aparício que mais tarde divulga o milagre que ocorreu a 30 de maio de 1232, quando os sinos de todas as igrejas de Lisboa repicaram espontaneamente e uma estranha alegria se espalhou pela população que, admirada, saiu à rua. Só dias mais tarde se iria saber que esse acontecimento ocorrera no dia e hora em que frei António tinha sido tornado santo em Espoleto, Itália, pelo Papa Gregório IX.

Santo António livrando o pai da forca Óleo sobre madeira, autor desconhecido, séc. XVI. MA.PIN.0001. © Museu de Lisboa – Santo António.
Santo António livrando o pai da forca Óleo sobre madeira, autor desconhecido, séc. XVI. MA.PIN.0001. © Museu de Lisboa – Santo António.

Destaca-se ainda o duplo milagre em que Santo António salva o seu pai da forca (milagre da ubiquidade e de fazer falar o morto) e que a tradição relata como tendo ocorrido próximo da Sé de Lisboa. Em ação de graças por este episódio, Martim de Bulhões (pai de Santo António) mandará erguer a ermida de São João Degolado, a atual igreja de São João da Praça no bairro de Alfama.

Já no séc. XX, Lisboa erigirá estátuas dedicadas a Santo António, uma inaugurada em 1972 no bairro de Alvalade, da autoria do escultor António Duarte e do arquiteto Antero Ferreira, apresentando Santo António como pregador, reforçando o facto de ser Doutor da Igreja.

Outra, inaugurada em 1982 pelo Papa João Paulo II no largo junto à sua igreja, da autoria do escultor Domingos Soares Branco. Representando a tradicional imagem de Santo António com o Menino Jesus sentado sobre um livro. Esta estátua é objeto da grande devoção popular, sendo frequente encontrar pessoas a lançar-lhe uma moeda para que esta caia no livro de modo a que se cumpra o desejado ou se consiga o almejado noivo.

O município de Lisboa dedicou-lhe um museu, localizado junto à Igreja de Santo António, que dá a conhecer a vida do Santo e as tradições a ele associadas, que em Portugal e nos países de língua portuguesa ou por onde os portugueses passaram, adquiriram características únicas, sendo um excelente ponto de partida para descobrir a Lisboa consagrada a Santo António e os inúmeros vestígios da sua presença.

Altar mor da Igreja de Santo António que se ergue no local da casa onde Santo António nasceu. © CML.
Altar mor da Igreja de Santo António que se ergue no local da casa onde Santo António nasceu. © CML.

Foto da capa: Lisboa: vista da Igreja de Santo António, Sé Catedral, bairro de Alfama e Mosteiro de São Vicente de Fora ao fundo. Foto © Marc Gulbenkian.

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