Ler os sinais dos tempos

Revisitei por estes dias, a propósito de alguns trabalhos nos quais estou envolvido, aquele magnífico texto do Concílio Vaticano II no qual se reflete sobre a missão da Igreja no mundo atual. Refiro-me, como devem imaginar, à Constituição Pastoral Gaudium et Spes. No momento em que o texto foi promulgado, estávamos no ano de 1965, referindo-se, pois, o “atual” a essa altura.

Já passaram praticamente 60 anos desde então, pelo que o mundo atual a que o texto se refere não é de todo o mesmo. Muita coisa mudou, a própria humanidade fez um longo caminho e a maneira como olha para a história não é a mesma, tal como não são simplesmente os mesmos os traços que marcam e definem o momento atual que vivemos. Pegar nesse texto e aplicá-lo, sem mais, aos dias de hoje, não seria certamente um exercício de grande prudência. No entanto, ao reler o texto, e tendo bem presente tudo o que acabo de referir, não deixa de ser surpreendente notar como algumas das caraterísticas nele identificadas, bem como alguns dos desafios ali apontados continuam a ser muito atuais, alguns deles, porventura, até mais atuais.

Atrevo-me, pois, a fazer o exercício de ler o momento atual, procurando identificar nele a missão a que somos chamados como cristãos, tendo em conta o que no nº 4 do texto se diz.

A humanidade vive hoje uma fase nova da sua história, na qual profundas e rápidas transformações se estendem progressivamente a toda a terra. Provocadas pela inteligência e atividade criadora do homem, elas reincidem sobre o mesmo homem, sobre os seus juízos e desejos individuais e coletivos, sobre os seus modos de pensar e agir, tanto em relação às coisas como às pessoas. De tal modo que podemos já falar duma verdadeira transformação social e cultural, que se reflete também na vida religiosa.

Não fosse pela linguagem utilizada – o texto utiliza a expressão homem quando hoje provavelmente utilizaria a expressão ser humano − e sem dificuldade tomaríamos o texto como tendo sido escrito nos nossos dias.
O mesmo se pode dizer do seguinte parágrafo:

Nunca o género humano teve ao seu dispor tão grande abundância de riquezas, possibilidades e poderio económico; e, no entanto, uma imensa parte dos habitantes da terra é atormentada pela fome e pela miséria, e inúmeros são ainda os analfabetos. Nunca os homens tiveram um tão vivo sentido da liberdade como hoje, em que surgem novas formas de servidão social e psicológica. Ao mesmo tempo que o mundo experimenta intensamente a própria unidade e a interdependência mútua dos seus membros na solidariedade necessária, ei-lo gravemente dilacerado por forças antagónicas; […], nem está eliminado o perigo duma guerra que tudo subverta. Aumenta o intercâmbio das ideias; mas as próprias palavras com que se exprimem conceitos da maior importância assumem sentidos muito diferentes segundo as diversas ideologias […].

Nunca o género humano teve ao seu dispor tão grande abundância de riquezas… e, no entanto, uma imensa parte dos habitantes da terra é atormentada pela fome e pela miséria.

Gaudium et Spes, 4

Face a esta realidade, o último parágrafo identifica bem o desafio que então se enfrentava e que, julgo poder dizer sem problema, continuamos a enfrentar:

Marcados por circunstâncias tão complexas, muitos dos nossos contemporâneos são incapazes de discernir os valores verdadeiramente permanentes e de os harmonizar com os novamente descobertos. Daí que, agitados entre a esperança e a angústia, sentem-se oprimidos pela inquietação, quando se interrogam acerca da evolução atual dos acontecimentos. Mas esta desafia o homem, força-o até a uma resposta.

A resposta a dar encontro-a bem identificada logo no primeiro parágrafo do nº 4 que estamos a citar:

Para levar a cabo esta missão, é dever da Igreja investigar a todo o momento os sinais dos tempos, e interpretá-los à luz do Evangelho; para que assim possa responder, de modo adaptado em cada geração, às eternas perguntas dos homens acerca do sentido da vida presente e da futura, e da relação entre ambas. É, por isso, necessário conhecer e compreender o mundo em que vivemos, as suas esperanças e aspirações, e o seu carácter tantas vezes dramático.

Ler os sinais dos tempos parece-me sinceramente ser um dos grandes desafios levantados hoje e, porque não dizê-lo, sempre às comunidades cristãs. Muito dependente desse exercício e do modo como for capaz de o realizar está, no meu entender, a fidelidade da Igreja à missão que lhe é pedida, tal como a relevância que será capaz de ter na sociedade e na vida dos nossos contemporâneos.

É dever da Igreja investigar a todo o momento os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho.

Gaudium et Spes, 4

O tempo pascal que agora estamos a viver é certamente tempo oportuno para deixar brilhar a luz do Ressuscitado nesse exercício.

Foto da capa: Manifestação de alunos do Ensino Superior.Foto 23 março 2023, ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA

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