A notícia: novembro de 2019. Uma jovem. 22 anos de idade. Dá à luz (oh expressão!) o seu filho. E imediatamente o abandona num contentor do lixo. Numa rua de Lisboa.

Nasceu!
Numa garagem abandonada, coberta de chapa de zinco,
E num caixote velho de latas de óleo,
Entre desperdícios sujos e usados.
Nossa Senhora e S. José tinham vindo pela estrada,
Os pés no asfalto negro, onde circulavam carros de luxo:
Pedir boleia, pediram, mas ninguém viu ou quis ver,
Ou escutar o gesto…
Iam apressados para a ceia da noite,
Desbragada como um conta-quilómetros
E cheia de neblina e de promessas.
Nasceu!
Num caixote velho de latas de óleo,
Entre desperdícios sujos e usados.
O clarão dos holofotes chamou lá os vadios de todas as noites:
Os guardas-nocturnos, os polícias de giro,
Os que não têm cama para dormir,
Os poetas e os fugidos à Lei – TODOS! –
Todos os que naquela e nas outras noites
Não têm para onde ir, nem têm onde comer.
Foi, porém, o clarão dos holofotes gastos que os levou lá:
E viram, sobre os desperdícios sujos, num caixote velho,
O Redentor do Mundo,
Aquecido pelos dez cavalos-vapor de um Ford T
Que trabalhando, acordava a vida no arrabalde longínquo.
(…)
Os vadios, os vagabundos, os guarda-nocturnos,
Motoristas e guarda-freios dos elétricos
Atraídos pela luz, pelos cânticos e pelo calor divino
Que irradiava daquela garagem,
Foram todos em debandada para lá.
(…)
Mal vestidas, esquálidas, crianças humanas.
Prostraram-se e choraram
E chorou e rezou até
Aquele motorista que odiava Deus!
E três fugitivos das nações ocupadas pela liberdade alheia
Vieram – evadidos dos campos de concentração –
Oferecer suas feridas, suas fomes, seu sangue inocente.
As buzinas dos carros todos
Tocaram a alegria daquela noite sem par…
Só o menino chorou para dentro
Porque sabia que o prenderiam outra vez,
Trinta e três anos depois,
Por sedicioso, como revoltado contra a Lei,
Aqui, por não ser do pacto do Atlântico,
Além, por não estar na Linha Geral do Partido.
Mas os humildes de todo o mundo
Vieram e compreenderam
A mensagem daquela noite sem par.

O texto é excerto de um poema de Amândio César, poeta de Arco de Valdevez, para a Noite de Natal de 1952. O título é apropriação (assumidamente indevida) de uma intuição do teólogo alemão Johann Adam Möhler (1796-1838), que a usou originalmente (1833) para “definir” a Igreja… A “associação livre” é minha.
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