Neste tempo que todos desejamos que seja verdadeiramente novo, um dos grandes desafios que sobretudo os mais jovens terão que enfrentar é o de responder à incerteza, desencanto e mesmo desespero com que estes dias se revestem com uma esperança que consiga ver além dessas “nuvens e trevas”.
Talvez (só) assim se tornará mais perceptível uma das “pedras de toque” da “esperança cristã” (nunca confundível com um qualquer “optimismo irrealista” ou “delírio utópico”): é na Memória-História do que fomos e somos que encontra(re)mos as raízes mais profundas do que haveremos de ser. Mas também todos sabemos que não é fácil (nunca o foi) “remar contra a maré” desse negativismo, não é fácil “pensar/agir fora da caixa” das nossas incertezas; talvez por isso o futuro e a sua intrínseca imprevisibilidade nos levem a dizer, pela fé, que só Deus é o seu verdadeiro “dono”. No entanto, há uma parte desse futuro (a parte em que ele se nos faz mais presente) que depende de nós e só de nós; e é essa parte que, por mais ínfima que seja, nos leva a querer poder decidir o que vamos fazer e quem vamos ser. No fundo, todos desejamos que dizer “ano novo” signifique “novo tempo” (mesmo que as horas continuem a ter 60 minutos e estes 60 segundos cada): porque só o Homem é capaz de “dar cor ao tempo”, de abrir novos horizontes, fazer novas escolhas e abraçar novas oportunidades; e, nas escolhas que (não) faz, só ele pode aprender e saber “o que custa a liberdade”, parafraseando a conhecida canção. Em época de tomarmos as ditas “decisões de ano novo” (mesmo que algumas tenham já um ou mais anos de atraso…), talvez seja também este o momento (mais) propício para assumir este “desafio profético da esperança”.
Da esperança “interior” à expectativa “universal”: dois textos (de Pedro e Paulo), a mesma fé (em Jesus)
É sobejamente conhecido o repto que S. Pedro faz aos cristãos que “peregrinam na diáspora” (1 Pe 1,1), ou seja, aos que estão “dispersos pelo mundo” e que tantas vezes, em razão dessa sua condição, se sentem sozinhos na sua fé: “no íntimo do vosso coração, confessai Cristo como Senhor, sempre dispostos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la peça” (1 Pe 3, 15). Não deixa de ser curioso que não é aqui a “fé” que exige “razões”: a fé está lá, sim, profundamente ligada à esperança, mas não é dela que o autor da Carta nos diz ser necessário “justificarmo-nos”. Esta fé é sinónimo de confiança, íntima e profunda (“do coração”) em Jesus Cristo “como Senhor”; e é Ele e só Ele a sua fonte e a sua força. “Dar a razão da nossa esperança” significa, portanto e antes de tudo, ver em Jesus Cristo o “Senhor” da nossa vida, confiar-Lhe a Ele (e só a Ele) o nosso futuro, os nossos sonhos, os nossos anseios, os nossos projetos. Ele e só Ele, que com a Sua vida venceu a morte (cf. 1 Cor 15, 56-457), é a verdadeira e profunda “razão da nossa esperança”. Como também dizia S. Paulo, é graças (literalmente!) a Ele que nada temos a temer: nem “a tribulação, [nem] a angústia, [nem] a perseguição, [nem] a fome, [nem] a nudez, [nem] o perigo, [nem] a espada (…) nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem as potestades, nem a altura, nem o abismo”, pois nada disto “poderá separar-nos do amor de Deus que está em Cristo Jesus, Senhor nosso” (Rm 8, 35. 38-39).
Paralelamente, se S. Pedro falava de uma esperança (interior) de que é preciso sabermos “dar razões” a quem tal nos exige (e não são poucos os que, hoje, nos questionam e “pedem razões” pelo nosso sorriso diante do mundo, apesar de todo o Mal que nele tão-bem vemos), S. Paulo, na sua Carta aos Romanos (8, 18-25), vai ainda mais longe: assumindo, com realismo, “os sofrimentos do tempo presente”, manifesta uma esperança de que estes, por maiores que sejam, “não têm comparação com a glória que há-de revelar-se em nós”. E porquê? Porque está convencido de que “até a criação se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus. (…) toda a criação geme e sofre as dores de parto até ao presente”. Já não são só os “filhos de Deus” que, em permanente estado de “advento”, aguardam, ansiosos, a vinda/regresso de Jesus: é a própria criação, na sua fria e invernosa aridez (e/ou na sua promissora e colorida primavera) a “gemer”, como a mulher grávida, “de esperanças” … Homem e mundo partilham assim da mesma condição enquanto a luz do amor de Belém não incandeia definitivamente todas as formas de escuridão… E sermos capazes de identificar estes “gemidos”, de perceber a cadência destas “contrações”, de entrever o mistério deste Amor que se nos faz presente (enquanto futuro prometido) não é exercício a que nos possamos evadir…
A esperança e as suas “irmãs”

Entre as virtudes ditas teologais (fé, esperança e caridade/amor), estamos habituados a ouvir dizer (com base no mesmo S. Paulo) de que “a maior de todas é o amor” (1 Cor 13, 13). Mas mesmo que tal não nos inspire dúvidas, talvez seja interessante recordar alguns excertos de um poema de Charles Péguy:
A fé que mais amo, diz Deus, é a esperança.
Não é a fé que me espanta.
A fé não me causa espanto.
Porque eu resplandeço da minha criação.
(…)
A caridade, diz Deus, essa não me espanta.
Não é para espantar.
Porque a pobre humanidade é tão infeliz
que a menos que tivesse
um coração de pedra, não poderia deixar de praticar entre si a caridade.
(…)
Mas a esperança, diz Deus, essa sim causa-me espanto.
Essa sim é digna de espanto.
(…)
A Fé é uma Esposa fiel.
A Caridade é uma Mãe.
Uma mãe ardente, toda coração.
Ou uma irmã mais velha que é como uma mãe.
Mas a Esperança é uma menina que parece não ser nada.
Que veio ao mundo no dia de Natal do ano passado.
Que ainda brinca com o janeiro bonacheirão.
(…)
Mas é essa menina que atravessará os mundos.
Essa menina de nada.
Só ela, guiando as outras, atravessará
os mundos revolvidos.
(…)
A pequena esperança caminha entre as suas irmãs mais velhas
e não lhe é dada a devida atenção.
No caminho da salvação, no caminho da carne,
no caminho pedregoso da salvação, na estrada interminável,
nessa estrada entre as suas duas irmãs,
caminha a pequena esperança.
Entre as duas irmãs grandes.
Aquela que é casada, e aquela que é mãe.
E ninguém repara nela, o povo cristão só repara
nas duas irmãs grandes.
A primeira e a última.
Que caminham com pressa.
Para o tempo presente.
No instante momentâneo que passa.
O povo cristão só vê as duas grandes irmãs.
Só olha para as duas irmãs grandes.
A da direita e a da esquerda.
E quase não repara na que caminha no meio.
A pequena, a que ainda vai à escola.
E que caminha.
(…)
É ela, essa menina, que arrasta tudo consigo.
Porque a Fé só vê aquilo que é.
Mas ela, ela vê aquilo que será.
A Caridade só ama aquilo que é.
Mas ela, ela ama aquilo que será.
(…)
É ela que faz andar o mundo inteiro”.
(Charles Péguy – Os portais do mistério da segunda virtude, Paulinas Editora, 2014, pp. 11. 15.17.20.22)
Fazendo parte desse mesmo povo que “não repara” nesta “esperança-menina”, cabe aos jovens serem capazes de, re-parando nela, perceberem-lhe o sorriso, penetrarem-lhe o olhar, imitarem-lhe os gestos e serem, como ela, “eternos meninos” que “vêm o que será”. Haverá maior desafio para o ano que agora começa?
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