No passado dia 11 de Outubro, celebramos a memória litúrgica de São João XXIII, por se assinalarem os 60 anos do início do Concílio Vaticano II (1962-2022). Quem foi João XXIII? Terá sentido apresentar um papa do século passado, pequeno, redondo, loquaz, sem pretensões, simples e aparentemente ingénuo, como um profeta do nosso tempo?
Papa João XXIII
Ângelo Roncalli, foi eleito Papa no dia 28 de Outubro de 1958. De origem pobre, os seus pais eram camponeses que trabalhavam terrenos arrendados no distrito de Bérgamo (norte de Itália). Tornou-se terciário franciscano, sacerdote, núncio apostólico na Bulgária, Turquia e França e, por fim, patriarca de Veneza antes de ser escolhido como Papa. Como núncio queixava-se que lhe fazia falta a vida pastoral de um simples cura de almas e que era condenado à vida administrativa e burocrática das nunciaturas. Mas o seu testemunho pelas grandes causas que abraçará como pontífice, esteve sempre presente por onde passou.
Em quatro anos e meio de pontificado, João XXIII deu um renovado impulso à evangelização e revolucionou a relação da Igreja com os fiéis, tornando-a mais próxima. Famosa ficou a visita à prisão Regina Coeli de Roma, quando disse aos presos:
Eu ponho os meus olhos nos vossos olhos: mas não, porque chorais? Sejais felizes por eu estar aqui. Pus o meu coração perto do vosso. O Papa veio, eis-me aqui. Penso convosco nos vossos meninos que são a vossa poesia e a vossa tristeza, penso nas vossas esposas, nas vossas irmãs, nas vossas mães…
Foi, também, o “homem-velho” que atualizou a doutrina social da Igreja Católica favorecendo o diálogo com a sociedade e o confronto com os desafios dos tempos modernos, empenhando-se abertamente pela paz no mundo com a publicação da encíclica Pacem in Terris.
Célebre foi a sua intervenção para travar os líderes das duas grandes potências mundiais – Rússia e Estados Unidos – à beira de uma guerra mundial e nuclear na tristemente famosa “crise de Cuba”.
Mas a intuição mais profética do Papa João XXIII, foi a decisão de convocar o Concílio Ecuménico Vaticano II: “Depois de quase vinte séculos, as situações e os problemas gravíssimos que a humanidade deve enfrentar não mudam” − dizia João XXIII, no discurso de abertura, a 11 de outubro de 1962.
Estava seriamente preocupado com o “perigo de guerras sangrentas”. E com coragem desafiadora apresenta a grande missão da Igreja para os tempos modernos, ser mãe misericordiosa: “Nos nossos dias, porém, a Esposa de Cristo prefere usar a medicina da misericórdia em vez de recorrer às armas do rigor”.
Eis que o “Papa bondoso”, assim era definido carinhosamente pelo povo, abriu o caminho da “misericórdia” aos seus sucessores, de Paulo VI a João Paulo I e II, até Bento XVI e Francisco: “A Igreja Católica − dizia no mesmo discurso − quer manifestar-se como mãe amável de todos, benigna, paciente, cheia de misericórdia e bondade para com os filhos separados”.
Com estas palavras, pronunciadas na festa da Maternidade da Bem-aventurada Virgem Maria, iniciou solenemente o XXI Concílio da Igreja. Durante a noite tinha chovido muito, mas, de manhã, o céu acalmou e o longo cortejo dos 2.400 Padres do Concílio ingressaram na Basílica atravessando a Praça de São Pedro. O Papa ‘octogenário’ avançava compenetrado e comovido, com lágrimas nos olhos, mas mudou de semblante ao ler aquele que João Paulo II definiu o “admirável” discurso de abertura solene.
Também Paulo VI, no Discurso de abertura do segundo período do Concílio, a 29-9-1963, destacou a figura de João XXIII como “a voz profética para o nosso século que ainda ecoa na nossa memória e na nossa consciência, ao traçar para o concílio a senda a percorrer”.
Mas o discurso que ficou gravado no imaginário do povo de Deus, não foi tanto aquele solene dirigido aos bispos do mundo inteiro, mas antes as palavras que lhe saíram do coração, no final do dia, aos fiéis que enchiam a Praça de São Pedro, em Roma e que ficou conhecido como “o discurso da lua” (ver o artigo Há sessenta anos).
Se as palavras do Papa que abriu o Vaticano II há 60 anos, marcaram uma viragem na Igreja, na compreensão da sua identidade e da sua missão de diálogo com o mundo, a verdade é que temos ainda muito caminho a percorrer na nossa Igreja sempre a “reformar” e sempre “em missão”.
A Igreja não celebrou o Concílio para fazer-se admirar, mas para se dar. Irmãos e irmãs, voltemos ao Concílio, que redescobriu o rio vivo da Tradição sem estagnar nas tradições; reencontrou a fonte do amor… para que a Igreja … seja canal de misericórdia para todos. Voltemos ao Concílio para sair de nós mesmos e superar a tentação da autorreferencialidade, que é um modo de ser mundano. Apascenta – repete o Senhor à sua Igreja – e, apascentando, supera as nostalgias do passado, o lamento pela falta de relevância, o apego ao poder, porque tu, povo santo de Deus, és um povo pastoral: não existes para te apascentares a ti mesmo, para galgares, mas para apascentares os outros, todos os outros, com amor… a fim de ser, como disse o Papa João, ‘a Igreja de todos e particularmente a Igreja dos pobres’.
Papa Francisco na homilia que assinalou o 60º aniversário do Concílio Vaticano II, a 11 de Outubro de 2022
Há um elo de ligação entre o Papa João XXIII e o Papa Francisco, entre o Concílio Vaticano II e a atualidade, chama-se, caminhar juntos, em “colegialidade” e em “sinodalidade”, “um caminho dentro do caminho”, dinamismo que o Concílio Vaticano II armou e que já não é possível desarmar, se não quisermos recuar para aquele clericalismo que a Igreja “povo de Deus, corpo de Cristo, templo vivo do Espírito Santo” quer derrubar!
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