Igreja Doméstica e Celebração da Páscoa

Já estamos a viver o tempo quaresmal que, como todos sabemos, é um tempo de preparação, para a celebração da Ressurreição de Jesus. Esta afirmação tão banal e que estamos tão habituados a ouvir, contem em si algo para o qual nem sempre estamos o
suficientemente despertos.

Se a escutarmos e olharmos com atenção veremos que a razão de ser deste tempo não reside nele mesmo, mas no acontecimento que quer preparar. Até do ponto de vista temporal isso é uma realidade, pois o tempo quaresmal é mais reduzido do que o tempo pascal, esse sim o centro e o cume das celebrações cristãs. Porque Ele ressuscitou não é vã a nossa fé. Porque Ele ressuscitou o acontecimento da cruz não significou um fim.

Refiro isto, porque muitas vezes noto como as comunidades cristãs acabam por concentrar quase todas as suas energias na preparação da celebração da Ressurreição que, depois, podem até correr o risco de um certo cansaço. Uma breve passagem pelas diversas atividades realizadas durante a quaresma facilmente nos dará conta da diversidade e multiplicidade das mesmas, o que é bom, porque queremos mesmo preparar o melhor possível a grande celebração da Páscoa.

O problema não reside aí, mas no facto de, seguidamente, também nos podermos dar conta de que as atividades e iniciativas relacionadas com o tempo pascal tendem a concentrar-se na semana imediatamente a seguir ao Domingo de Páscoa, perdendo, depois, foco e intensidade à medida que o tempo avança. O tempo pascal é que é o tempo central. Com isto não quero retirar nenhuma importância à quaresma, pelo contrário, o que desejo é sublinhar aquilo que ela mesmo pretende sublinhar.

Esta reflexão vem a propósito do tempo pascal que estamos a preparar. Uma vez mais (este será o segundo ano) a Páscoa terá de ser vivida de um modo diferente.

A situação em que nos encontramos, do ponto de vista da pandemia, continua a aconselhar todos os cuidados. Ainda não vai ser este o momento para realizarmos as grandes celebrações comunitárias, para nos juntarmos e com uma só voz, ainda que em muitas tonalidades, cantarmos o aleluia que proclama a vitória da vida sobre a morte. Mas que a Páscoa não possa ser celebrada assim não tem de ser sinónimo de uma celebração menor, nem menos intensa ou verdadeira. O que a celebração da Páscoa significa não vai acontecer este ano a meias. A ressurreição não perde a sua centralidade, nem pode deixar de ser a dinâmica a marcar toda a vida e ação das comunidades cristãs.

Preparar a celebração da Páscoa como um grande hino à vida

É também esta realidade que teremos de ter presentes neste tempo quaresmal. Não podemos esquecer a revisão de vida, não podemos secundarizar a oração, não podemos ignorar o jejum e a esmola. Mas temos de nos preparar bem para que a Páscoa possa ser celebrada e vivida como um grande hino à vida, um grande grito de esperança e como estamos todos precisados disto.

Não se trata de ignorar a dor nem as dificuldades reais porque uma grande parte da humanidade está a passar, pelo contrário, trata-se de as ter bem presentes e de as envolver na força e na dinâmica da Ressurreição. Celebramos a vitória da vida, gritamos a esperança, porque sabemos que a última palavra não pertence ao domínio da morte, ainda que não esqueçamos que muitos estão a chorar, neste momento, por causa da morte dos seus entes queridos. É também por eles, e em certo sentido principalmente por eles, que celebramos a Ressurreição do Senhor.

Família - Sal da terra, luz do mundo

Cada família cristã que celebre a Páscoa é plenamente Igreja

Este é também o tempo de prepararmos as nossas famílias, como Igreja doméstica que são, para a celebração da Páscoa. Cada família cristã que celebre a Páscoa é plenamente Igreja. Claro que não é Igreja sozinha, mas, insisto, é plenamente Igreja. A Igreja Doméstica não é nem substitutiva nem alternativa. Não é apenas uma realidade substitutiva à comunidade paroquial, por exemplo, num momento em que esta não se pode reunir; nem é uma realidade alternativa que a queira substituir. A comunidade eclesial é mais ampla do que a soma das famílias, mas jamais poderá prescindir destas, sem se ver afetada na sua autenticidade.

Privilegiar a dimensão da Igreja Doméstica

Este tempo quaresmal deveria, pois, também ser aproveitado para que as comunidades paroquiais – que gostamos de chamar e entender como família de famílias – ajudem a preparar a celebração e vivência de todo o tempo pascal, sublinhando e destacando a dimensão da Igreja Doméstica.

Talvez possamos insistir mais nessa realidade e não ficarmos apenas reduzidos a celebrações transmitidas, remotamente, pelos mais diversos modos e plataformas.

Ajudar a dinamizar e robustecer as famílias como Igreja Doméstica, deveria ser também uma das preocupações centrais desta quaresma, para que a partir delas a realidade da ressurreição possa verdadeiramente transformar em vida o que ainda vai estando marcado pela morte.

Foto da capa: Família – Escultura em bronze de Henry Moore (1949) exibida no Tate Museum. Foto de Rick Lightelm, 2017 | Wikimedia Commons.

%d bloggers like this: