Há uma bio-logia que deve promover uma bio-grafia

Os dias passam muito depressa, as notícias sucedem-se vertiginosamente… e nós corremos de ponto em ponto, de tema em tema, de responsabilidade em responsabilidade, de preocupação em preocupação…

Neste contexto, quase que parece que é ‘pecado’ parar, descansar, tirar férias, jantar demoradamente… simplesmente estar.

Voltemos à pergunta original: o que fica do que passa? Talvez esta seja apenas o início de outras perguntas bem mais interessantes: quem fica diante de tantos que passam? E, sobretudo, como fico diante de tudo o que passa?

Como vou vivendo toda a vida que me habita? Como vou realizando a missão do existir? Como vou concretizando a vida que tenho?

Li há pouco tempo uma frase que me deixou a pensar: há uma biologia mas também há uma biografia (Pablo d’Ors).

De facto, há uma bio-logia, ou seja, um pensamento sobre a vida, uma lógica de vida. Há um pensar a vida, um teorizar opções, um fundamentar sentidos. No entanto, é preciso não ficar aí, ou não pensar que a vida toda se esgota aí.

Desperdiçar é pecado (mortal)

Por isso, precisamos de falar de uma bio-grafia, ou seja, de um escrever a própria vida, de um assumir as rédeas da nossa vida. Trata-se de uma ação, de um fazer acontecer, de uma escrita.

Não podemos deixar que sejam os outros a escrever a nossa vida, nem sequer podemos entregar ao ‘tempo’ e ao ‘acaso’ essa missão. A vida não pode ser um ‘deixar passar’ ou um ‘amanhã se verá’.

Trata-se de um grande dom e de um grande privilégio que precisamos de reconhecer de mangas arregaçadas. Uma oportunidade que não podemos desperdiçar. Desperdiçar é pecado (mortal).

Um dom que cresce na medida em que se partilha

Trata-se de um dom que se alimenta não com lamúrias ou com queixumes, mas com agradecimento e com reconhecimento. Um dom que cresce na medida em que se partilha.

Quem se fecha em si mesmo, quem se julga superior, quem prescinde dos outros, mesmo sem saber, está enfraquecido, está fragilizado, está empobrecido.

Arriscar ser autor e não cábula

Na verdade, precisamos de escrever a nossa própria vida, de sermos verdadeiros autores e não ‘copiadores’. A tentação de copiar não se ‘termina’ nos exames! Ser autor é aceitar que não se é perfeito, mas pode tentar-se ser autêntico. É arriscar inovar e correr riscos.

Ser autor não significa ignorar os outros, nem escrever a vida como se estivéssemos sozinhos no mundo. Ser autor não é uma questão de vaidade, de auto-suficiência, ou de auto-centralismo.

Precisamos de uma ‘bio-grafia’ enriquecida por dentro, por profundidade, por identidade e por espiritualidade. Uma vida que reconhece o mistério, a densidade, a beleza, a maravilha, o milagre quotidiano (mesmo no meio de muitas desgraças).

É todo esse ‘para além da evidência’ que diz muito do que somos e do que nos habita. Podemos não dar nome a essa realidade, podemos ter dificuldade em identificar… mas não conseguimos calar a força de um abraço, a alegria de uma vida partilhada, o entusiasmo de uma refeição animada, a esperança de uma vida celebrada…

Uma vida (eterna) em plenitude que se começa a celebrar aqui na terra

Quando penso nesta plenitude de vida, quando desejo esta ‘eternidade’ já presente… há um nome e um rosto que me inspira – Jesus Cristo.

Jesus também tem uma ‘bio-logia’, tem um pensamento sobre a vida, faz parte de uma história (genética, social, cultural, religiosa…), mas o que foi especial nele é que concretizou uma grande ‘bio-grafia’ − mesmo sem escrever um livro! Aliás consta que terá escrito apenas umas palavras no chão no episódio da pecadora que teria sido apanhada em adultério.

Deixar que Deus escreva a sua vida em nós e através de nós

As grandes ‘bio-grafias’ escrevem-se com vida, com gestos, com palavras. Quantos santos foram assim (recordo entre outros – Madre Teresa de Calcutá, Óscar Romero, Francisco de Assis).

Livro aberto em cima de tronco.
Livro aberto em cima de tronco.

Nestas vidas descobrimos que o mais importante é deixar que o evangelho aconteça na nossa vida concreta e quotidiana. Descobrimos que o mais importante é deixar que Deus escreva a sua vida em nós e, através de nós, em todos com quem nos vamos cruzando.

Nos dias que correm, podemos continuar as páginas do evangelho, podemos ser o único evangelho que continua a ser lido e a única escritura que continua a dar vida. Não porque sejamos perfeitos, mas porque deixamos que Deus fale através de nós.

Um Deus vivo que nos eleva e nos convoca a uma vida plena, isto é, a uma vida eterna que já se começa a celebrar aqui na terra. Uma vida cheia e plena não pela quantidade de coisas que fazemos ou acumulamos, mas na densidade e profundidade que damos ao que somos e partilhamos.

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