Há sessenta anos, no dia 11 de outubro, iniciava-se em Roma a aventura de um Concílio. Tinha sido anunciado pelo Papa João XXIII, em 25 de janeiro de 1959: “Veneráveis Irmãos e Amados Nossos Filhos! Pronunciamos diante de vós, certamente tremendo um pouco pela emoção, mas ao mesmo tempo com humilde resolução de propósito, o nome e a proposta da dupla celebração: de um Sínodo Diocesano para a Urbe e de um Concílio Ecuménico para a Igreja universal”. A 2 de Fevereiro de 1962 foi marcada a data de início: “Esta data é 11 de outubro do ano de 1962; e é uma lembrança do Concílio de Éfeso”.
A marcação de um concílio depois das dificuldades e dos problemas do Vaticano I (recorde-se que dos 764 padres conciliares apenas 533 estavam na sala para votar o dogma da infalibilidade pontifícia) foi considerada por muitos como algo preocupante para o futuro da Igreja.
Quando alguém perguntou ao Papa porquê um concílio nesta altura, ele aproximou-se da janela, abriu-a e explicou: “Para que os que estão dentro vejam o que está fora e para que os que estão fora vejam o que está dentro”.
Entre o anúncio e o início do concílio decorreram três anos de longa preparação protagonizada pela Cúria Romana.
Quando se abriu o Concílio muitos pensavam que era uma questão de semanas. Tudo estava preparado. Era só votar…
Sem dúvida que a intervenção do Papa na sessão de abertura e a sua alocução à noite no chamado “discurso da lua”, um improvisado e emocionado comentário diante de uma multidão (cem mil ) reunida na praça com velas acesas, marcam uma linha orientadora que vai permanecer ao longo de todo o concílio.
Concílio Vaticano II – Discurso de Abertura do Papa João XXIII
Será um concílio pastoral que não irá condenar, mas acolher, manifestando a misericórdia de Deus.
“É necessário que esta doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e exposta de forma a responder às exigências do nosso tempo. Uma coisa é a substância do depositum fidei, isto é, as verdades contidas na nossa doutrina, e outra é a formulação com que são enunciadas, conservando-lhes, contudo, o mesmo sentido e o mesmo alcance. Será preciso atribuir muita importância a esta forma e, se necessário, insistir com paciência, na sua elaboração; e dever-se-á usar a maneira de apresentar as coisas que mais corresponda ao magistério, cujo caráter é prevalentemente pastoral…
A Igreja sempre se opôs a estes erros; muitas vezes até os condenou com a maior severidade. Agora, porém, a esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade. Julga satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validez da sua doutrina do que renovando condenações…
A Igreja Católica, levantando por meio deste Concílio Ecuménico o facho da verdade religiosa, deseja mostrar-se mãe amorosa de todos, benigna, paciente, cheia de misericórdia e bondade também com os filhos dela separados. Ao género humano, oprimido por tantas dificuldades, ela diz, como outrora Pedro ao pobre que lhe pedia esmola: ‘Eu não tenho nem ouro nem prata, mas dou-te aquilo que tenho: em nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda’”.
Discurso da Lua – Papa João XXIII

“Caros filhinhos, ouço as vossas vozes. A minha é apenas mais uma, mas condensa a voz do mundo inteiro. Todo mundo está aqui representado. Parece que até a lua está com pressa esta noite − observai-a lá no alto, está contemplando este espetáculo. É que encerramos uma grande jornada de paz. Sim, de paz: Glória a Deus e paz aos homens de boa vontade.
Voltando para casa encontrarão as crianças. Deem-lhes um carinho e digam: “Este é o carinho do Papa”. Talvez as encontrareis com alguma lágrima por enxugar. Tende uma palavra de consolo para aqueles que sofrem. Saibam os aflitos que o Papa está com os seus filhos, sobretudo nas horas de tristeza e de amargura. E depois, todos juntos vamos nos animar uns aos outros, cantando, suspirando, chorando, mas sempre cheios de confiança em Cristo que nos ajuda e nos escuta, continuemos a retomar o nosso caminho. Adeus, filhinhos. A bênção acompanha também o meu desejo de uma boa noite”.
A surpresa iria começar logo no início dos trabalhos
Quando foram apresentados os nomes dos elementos para as comissões, o Cardeal Lienart, bispo de Lille, pediu mais tempo para que os padres conciliares pudessem conhecer-se pois “é impossível votar desta maneira sem conhecer os candidatos mais qualificados”, ao que Tisserant disse “Eminência, a ordem do dia não prevê debates. Estamos reunidos apenas para votar”. Os cardeais Konig, Frings e Dopfner apoiaram Lienart e foi adiada a votação.
Os padres Conciliares iriam ser os protagonistas do concílio e não a Cúria. É uma resposta sinodal aos desejos de um centralismo procurado pelos setores menos dispostos à mudança. O concílio não iria durar umas semanas mas três anos de debates e surpresas em que os cerca de dois mil bispos, muitos deles acompanhados por peritos de reconhecida competência teológica, apesar de alguns terem sobre si o selo condenatório. Uma lenta conversão foi ajudando a mudar mentalidades e o último documento sobre a Igreja e o mundo (Gaudium et Spes) é uma feliz coroação de todo o processo.
Sessenta anos depois e agora?
Termino com um comentário humorístico de Christopher Lamb que compara o Concílio Vaticano II a uma equipa de futebol, passando dos anos gloriosos do início para os revezes do tempo em que parecia ter descido de divisão.
O processo sinodal é um exemplo da tentativa de Francisco dar vida à eclesiologia do Vaticano II, seguindo o modelo conciliar da Igreja como Povo de Deus e buscando encontrar caminhos para a hierarquia e o povo discernirem coletivamente a vontade do Espírito Santo. O Concílio foi uma tentativa de recuperar o espírito do cristianismo primitivo e encontrar novas maneiras de apresentar a verdade eterna do Evangelho.
Com a sua visão de uma “Igreja pobre para os pobres”, este papa seguiu o que Joseph Ratzinger escreveu sobre o Concílio, em 1966: “A Igreja há muito tempo se parece com uma Igreja de príncipes barrocos. Agora está voltando ao espírito de simplicidade que marcou as suas origens – quando o ‘servo de Deus’ escolheu ser filho de um carpinteiro e escolheu pescadores como seus primeiros mensageiros”, escreveu Ratzinger, mais tarde Papa Bento XVI, em Theological Highlights of Vatican II (“Os melhores momentos teológicos do Vaticano II”, em tradução livre).
Sob o comando do técnico Bergoglio, o Vaticano II recebeu uma nova vida.

Como é difícil entender a Mensagem de Jesus. Desenho de Agustin de la Torre, https://agustindelatorre.com.
Professor no Colégio Maria Auxiliadora de Sevilha.
“Casado com dois filhos. A minha família é o melhor que tenho… Saboreando a vida cada dia e procurando mudar pouco a pouco. Deus é grande… digo-o por experiência”.
PS. Não sendo um documento conciliar, não pode deixar-se sem referência o Documento das Catacumbas. Aí está clara a opção pelos pobres e as suas linhas irão marcar profundamente a receção do concílio, sobretudo na América Latina com as conferências de Medelim e de Puebla.
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