Passada a quarentena, foi este o primeiro filme que vi em sala, de máscara como manda a lei: Retrato da Rapariga em Chamas.
É um filme magnificamente feminino que coloca ao espectador – talvez ainda mais ao espectador crente – algumas questões que dão que pensar. Penso que não é um filme ideológico a fazer a apologia da homossexualidade feminina ou do aborto, mas um retrato sofrido, sobretudo das ‘três protagonistas’.
Tirando aqueles que levam o barco e um deles que vai buscar as coisas já no fim, os homens estão fisicamente ausentes do filme, se bem que a sua sombra esteja sempre presente. Está ‘presente’ aquele que a mãe deseja para casar com a filha, Héloïse; está ‘presente’ aquele que engravidou Sophie, a criada da casa; está ‘presente’ o pai de Marianne, um pintor reconhecido e ao nome do qual ela vai ‘recorrer’ para conseguir expor o seu quadro de Orfeu e Eurídice.
De facto, Marianne é uma pintora, contratada para fazer o retrato de Heloïse. É já uma segunda tentativa, uma vez que o primeiro pintor não tinha sido capaz de a pintar, já que ela se recusava a posar. A sua irmã mais velha, que ia casar, tinha-se suicidado, e Heloïse teve de deixar o mosteiro onde estava para aceitar, contrariada, esse casamento no lugar da irmã. Para a mãe, viúva, esse casamento era obrigatório, certamente para garantir o futuro sustento e situação social.
Marianne chega então, de barco, à ilha. E chega à casa onde é recebida por Sophie que lhe indica o ‘quarto’ onde vai ficar, de maneira quase mecânica. A casa parece desabitada. Só ao outro dia conheceremos a mãe e, mais tarde, a que há-de ser retratada. Marianne tem uma tarefa dificílima. Uma vez que Heloïse se recusa a posar, ela tem de fazer de conta que é apenas uma dama de companhia, ao mesmo tempo que tem de ir fixando as suas feições para tentar, à noite em segredo, fazer o retrato.

Desde cedo se percebe a cumplicidade e confiança – afinal, o amor – que vai crescendo entre as duas mulheres. Por isso, o filme é um caminho acidentado de desvelação de cada uma delas. As duas vão acabar por ajudarem-se a encontrar o seu ‘destino’: Heloïse casará e terá mesmo uma filha, e Marianne verá um seu quadro exposto numa grande exposição, reconhecida no seu talento, ainda que tenha de usar o nome do pai. Estamos em França, no século XVIII, antes da Revolução, e as mulheres pintoras ainda não podiam tratar certos temas nem eram reconhecidas.
Uma personagem importante é também a criada Sophie que é como que o terceiro vértice do triângulo de amor, amizade, cumplicidade, alegria e solidariedade feminina – sororidade – que se vai desenhar naquela casa e naquelas vidas. E quando Sophie precisar de recorrer a uma mulher para abortar, Heloïse e Marianne estarão ao seu lado para a acompanhar. E sendo um momento de morte, essa cena, intensa e forte, é também uma metáfora poderosa a lembrar-nos como uma mãe deseja sempre a vida.
Não sei se é um filme ‘recomendável’. Repito apenas que é um filme magnificamente feminino, a começar pela realizadora – Céline Sciamma – que não esconde esse seu olhar e nos dá a ver um filme luminoso, íntimo, sereno, aceso pelo desejo – desejo puro e sem convenções, que também quer desmascarar preconceitos que secundarizam e objectificam a mulher. papéis completamente diferente. Um filme cheio de subtilezas.
Portrait de la Jeune Fille en Feu - Retrato da rapariga em chamas de Céline Sciamma, Drama, M/12, França, 2019.
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