Europa para onde vais? Introdução

Mesmo com saltos quânticos, o absoluto dos atos, que escapa ao tempo, marca indelevelmente o real que cria.

O rio Zêzere nasce na Serra da Estrela, não nasce nos Himalaias. Talvez por isso não se seja tributário, por exemplo, do Ganges, mas do Tejo. O absoluto do início de algo marca de forma indelével e não multiplicável por (-1). Miticamente, os inícios da designação Europa são perversos: Europa é uma jovem princesa da zona do actual Líbano por quem o tirano deus Zeus se apaixona e a quem engana e rapta para a possuir.

Não miticamente, a Europa é algo cujas reais origens se desconhecem: parte da Eurásia, em termos físicos, é provável que seja fruto da deriva das placas continentais; politicamente, corresponde a uma imensa diversidade, sincrónica e diacrónica, de povos e culturas.

Sem escapar ao destino político geral da humanidade, dividido realmente – para lá dos mitos auto-portantes dos vários senhores dos vários momentos – entre tiranias e oligarquias, que sempre conheceu, todavia, foi nesta mesma Europa de míticos perversos inícios e de história rica de diferencialidade humana sujeita aos modos de poder universalmente comuns, que surgiu, mais do que a noção de democracia, a noção, a intuição do sentido da dignidade única de cada pessoa humana.

Deveria ser sobre este sentido que a democracia real, a existir, deveria ser fundada. Dignidade absoluta do ser humano: nada ou ninguém substitui Sócrates: o seu ser é algo de humanamente precioso, e, assim, de todos os seres humanos. Todavia, mesmo o povo que permitiu que esta noção nele surgisse não foi capaz de respeitar tal surgimento, matando Sócrates.

De um outro horizonte geográfico, recebeu a Europa o sentido de uma realidade trans-mundana a que o mundo deve o seu ser e à misericórdia de que, de quem, deve a sua libertação de tudo o que faz lembrar o vil ato de Zeus para com a princesinha: é a presença cultural profunda da inteligência do ser segundo o modo nascido no Médio-Oriente, com Judeus e primeiros Cristãos.

Da pregação de Paulo, Judeu, Cristão e ‘Grego’ nasceu o futuro da Europa, da Europa do tempo de Paulo, da Europa que se foi construindo durante dois mil anos após Paulo, da Europa possível, esta em que nós vivemos, esta que nós somos.

Ora, esta Europa é tudo isto: mácula da divina besta tirânica, jovenzinha maculada, Sócrates assassinado, descoberta da grandeza antropológica, diferença antropológica, sentido metafísico último para os atos, fé do ser humano em si próprio e em algo que infinitamente transcende tal fé e seu sujeito.

O futuro, o «para onde ir» da Europa, se Europa for passível de ser, terá de ser posto como finalidade de fidelidade ao que de melhor criou, ao sentido da preciosidade antropológica, ao sentido da preciosidade da diferença antropológica, ao sentido do acolhimento do diferente, sem vacilar quanto aos princípios que mandam que Sócrates seja amado e não assassinado.

Europa deve afastar-se o mais possível do que Zeus representa e aproximar-se o mais possível do que Sócrates representa. Esta é a possibilidade laica de bem para a Europa. Em termos já não-laicos, o futuro bom possível para a Europa é o mesmo que para todo o mundo: o bem-comum, na forma de atos de amor, tendo como modelo o ato da pessoa do Cristo.

Américo Pereira é Doutor em Filosofia, pela Universidade Católica Portuguesa, onde é professor.
Tem mais de uma centena de publicações científicas, incluindo doze livros, nas áreas da Ontologia, Ética, Pensamento Português, Epistemologia, Filosofia da Religião, Filosofia Antiga e Filosofia Política.
É colaborador da revista Mensageiro de Santo António.

Foto da capa: Rapto da princesa Europa, óleo sobre madeira de carvalho, Rembrandt, 1632, the Getty Museum, Los Angeles, EUA.

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