Etapas do percurso

Qual é a distância entre os nossos ideais e a dura realidade? Entre a realização final do nosso sonho existencial e as suas realizações parciais e mutáveis? Entre a meta e as etapas intermédias? No melhor cenário cabe-nos a nós medir essas distância e, no pior cenário, aguentar com as decepções, as frustrações, a impaciência.

Esquecemos facilmente que nem tudo é possível de alcançar com um click, sobretudo no nosso percurso de vida, que merece todo o nosso esforço, compromisso e procura: não somos apenas o que seremos quando, finalmente, atingirmos a meta, mas somos também o que entretanto formos, enquanto caminhamos, num equilíbrio precário, sobre a linha, nunca reta, que liga a partida à chegada. A alternativa é vaguear como um zombie no espaço perdido das lamentações.

Para o nosso Fernando, esta distância mede, inicialmente, cerca de 200 quilómetros, mais ou menos uma semana a pé. É a distância entre Lisboa e Coimbra; do mosteiro dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, em São Vicente de Fora, ao mosteiro dos mesmos Cónegos em Santa Cruz de Coimbra, onde a alma inquieta de Fernando esperava encontrar mais silêncio e tempo para dedicar a Deus. Tinha sido ele a pedir a mudança e contava com esses quilómetros para ver mais claro e ter a certeza das escolhas feitas.

Mas será que o chamamento de Deus pode ser medido dessa forma?

A rotina dos dias no novo mosteiro é repentinamente interrompida pela chegada, de Itália, de alguns frades menores. O seu estilo de vida, tão diferente e alternativo, perturba Fernando, arrancando-o literalmente do mosteiro.

Troca de roupa: da faustosa túnica monástica para a rude e pobre veste franciscana; troca de casa: do mosteiro monumental para os abrigos em grutas e cabanas; cerca de 4 km, menos de uma hora, para quem tem boas pernas, é a distância entre o mosteiro e o ermitério de Santo Antão dos Olivais, situado no meio das oliveiras, onde acamparam os franciscanos vindos de Assis. São poucos quilómetros, mas, para Fernando, que grande distância!

Ao percorrê-los, pela última vez na sua vida com os pés calçados, descobre que o destino nunca é o resultado dos nossos desejos e a vontade de Deus não coincide propriamente com os nossos projetos. Forçado a aprender que, para encontrar-se, é necessário perder-se!

Desta vez, nem precisou de fazer as malas. De facto, Fernando percebe que deve levar apenas a sua alma e deixar tudo o resto para trás. Esses frades chamam pomposamente a isso “Dona pobreza”.

A que poderei comparar essa pobreza?

Se isso dissesse respeito  apenas às coisas materiais, seria, provavelmente, fácil de suportar: até pelo facto de um certo snobismo soar bem nessa idade. Mas o que aqui está em jogo é algo de bem mais profundo.

“A que poderei comparar essa pobreza?”,  pergunta Fernando, não encontrando na sua experiência nada que se parecesse com ela. Será, porventura, como a tosca tigela de madeira, que os seus novos companheiros de viagem lhe ofereceram? Pode-se encher  gota a gota quando chove ou junto de uma fonte no campo.

Com uma moeda recebida de esmola podem fazer-se malabarismos. E, com um pauzinho, pode-se batucar alegremente nas bordas. E, mesmo que esteja vazia, não deixa de estar cheia: de ar, de céu. Caramba, quantas coisas pode conter uma tigela!

Todavia cabe apenas uma de cada vez. Se estiver cheia, quando quero enchê-la com outra coisa, primeiro devo esvaziá-la, devolvendo o seu conteúdo com gratidão aos legítimos proprietários: a água ao céu, a moeda ao doador, o barulho ao pauzinho, o pauzinho à terra.

É esta a pobreza que enriquece? Entregar-se ao Divino Dispenseiro, àquele Deus que, aparentemente, se esqueceu mais uma vez de colocar o ponto final na minha história.


Foto da capa: A vocação de Santo António. Ilustração: Luca Salvagno.

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