Estrelas na noite

Quem olha para o panorama da vida da Igreja não pode deixar de olhar para o problema da falta de vocações. Não apenas para o sacerdócio mas também para as ordens religiosas, quer masculinas quer femininas.

Um pouco por todo o mundo sobram seminários e conventos, grandes edifícios que foram fontes de vida e de contemplação. Não é previsível que os velhos tempos regressem. Como dizia José Maria Castillo, “uma religião voltada para o passado pode ser a religião mais ortodoxa, mas não seduzirá as pessoas”. Edifícios transformados em hotéis de luxo, em centros de lazer, vendidos ou cedidos em diversos modelos jurídicos?!

É nesta noite sem aurora à vista que temos necessidade de olhar as estrelas que vão surgindo e nos podem levar até à contemplação de um quadro familiar: “Quando entraram na casa viram O Menino com Maria, Sua Mãe” (Mt 2,11).

Na noite brilham várias estrelas, experiências recentes que desafiam a transformação da vida religiosa e dos seus edifícios desabitados.

1. Aldeia de Francisco

A abadia de Notre-Dame-du-Désert, ao sul de Toulouse, pertenceu aos monges trapistas durante mais de 160 anos, até outubro de 2020; agora acolhe as primeiras famílias que participam num projeto cujo objetivo é oferecer uma oportunidade de reinserção laboral a pessoas em situações de dificuldade.

A notícia, dada por Vatican News, a 4 de janeiro de 2022, apresenta um pouco dos diferentes elementos que constituem esta associação como uma resposta aos desafios não só da Laudato si’, mas também da Fratelli Tutti.

O fundador desta singular experiência, Étienne Villemain, já tinha estado na origem da Association por l’Amitié e Fratello, associações que se dirigem primariamente aos pobres e que, partindo duma ideia de fraternidade, procuram que eles encontrem o seu lugar como protagonistas da sua própria vida.

Não passaram despercebidos encontros no dia mundial dos pobres que têm tido o apoio da Fratello e que, em novembro passado, conseguiu reunir um significativo número de pobres em Assis.

A ideia da Aldeia de Francisco emerge dessa experiência de contacto com o mundo dos excluídos da nossa sociedade e ganha nova força com a entrega do mosteiro dos Trapistas a um grupo inicial de 12 famílias.

No horizonte há uma preocupação de serem herdeiros dos monges, continuando as suas produções em termos agrícolas e avançando nas experiências de permacultura e de trabalho de renovação do convento de acordo com as exigências de uma visão ecológica da sustentabilidade.

Na palavra de Étienne há uma visão muito clara do sonho que o motiva bem como à sua equipa:

Queremos cuidar da casa comum, da ecologia integral e da vida do princípio ao fim: por isso acolhemos as mães grávidas em necessidade e as pessoas idosas que talvez possam acabar os seus dias na Aldeia de Francisco…
Queremos criar um ecossistema completo. Tendo em mãos a Laudato Si’ e Fratelli Tutti procuramos viver algo muito simples.

Frei Pierre-André, abade da ex-comunidade trapista, a 3 de outubro de 2020, entrega as chaves a Étienne e às 12 famílias que vão de imediato viver na nova casa, feliz porque o seu convento continuará a ser um sinal e “uma luz erguida sobre o candelabro” (Mt 5,15).

2. Comunidade Dominicana de Manresa e a sua transformação

Irmã Lúcia Caram fala com o Papa Francisco sobre a Vida Nueva, “refundação” da comunidade contemplativa no mosteiro de Nossa Senhora dos Anjos e de Santa Clara das dominicanas de Manresa.

O mosteiro de Nossa Senhora dos Anjos e de Santa Clara das dominicanas de Manresa iniciou uma experiência a que Vida Nueva chama de “refundação” da comunidade contemplativa.
Anima esta transformação a irmã Lúcia Caram, uma religiosa originária de Argentina. Recorda, como um aguilhão na sua vida, o momento em que Domingos, antes de fundar a ordem dominicana, era estudante em Palência quando uma vaga de fome se abateu sobre a região: “Estou a estudar sobre peles mortas enquanto, a meu lado, peles vivas morrem de fome”. Este pensamento levou-o a vender os pergaminhos para socorrer as pessoas necessitadas.

No convento, o ora et labora (ora e trabalha) foi assumindo uma componente de proximidade com os pobres e refugiados. Foi criada a Fundação de Santa Clara que, rapidamente, se tornou um entreposto de ajudas para os que tinham sido jogados para a margem da vida.

A participação dos leigos que partilhavam a vida das irmãs foi amadurecendo o sonho de uma nova forma de vida contemplativa, com o apoio do Papa Francisco e do Cardeal de Barcelona:

Durante estes anos procurámos dar passos para que o nosso convento fosse uma casa para os mais pobres. Não podemos permanecer quietas quando os nossos irmãos perdem a vida no Mediterrâneo, perdem o seu trabalho, as suas casas, não têm que comer e batem à porta do nosso convento à procura de ajuda, de alguém que os escute e os acolha.

3. Era peregrino (per + agere, isto é, estrangeiro), e tu me acolheste

É avassalador o número de migrantes nos nossos tempos. Segundo o relatório anual da agência das Nações Unidas para os Refugiados o número de refugiados e deslocados internos cresce para 82,4 milhões. Mesmo com a pandemia, o número de refugiados e deslocados internos cresceu 4% em relação aos 79,5 milhões no final de 2019.

O papa Francisco tem alertado constantemente a sociedade para este grave problema que não está unicamente situado na Europa. O grito de angústia do Papa Francisco, pela 2ª vez em Lesbos: “Não permitamos que o mare nostrum se torne num mare mortuum, não permitamos que este lugar de encontro se torne um teatro de conflitos! Suplico-lhes: detenhamos este naufrágio da civilização”, gritou do novo campo de Kara Tepe, diante de cerca de 200 pessoas, representantes de refugiados, trabalhadores humanitários e da presidente grega, Katerina Sakelaropulu.

Qual tem sido a resposta da Igreja a este desafio?

3.1 Scalabrinianas Missão com Migrantes e Refugiados (SMR)

A Casa Mambré, oferece ajuda humanitária básica que inclui também atividades para as crianças.
A Casa Mambré, oferece ajuda humanitária básica que inclui também atividades para as crianças.

Desde a sua origem, em 1887, o carisma dos missionários de São Carlos Borromeu (Scalabrinianos) tem sido o serviço aos migrantes.

No México, em 2013, a Irmã Letícia Gutiérrez e dois voluntários fundaram a Casa Mambré, que oferece ajuda humanitária básica: hospedagem, saúde, alimentação, vestuário, acompanhamento legal e psicológico, atendimento médico, dentista, área de inserção sócio laboral, atividades para as crianças (foto ao lado), oficinas, aulas de ioga e apoio espiritual.

Os migrantes permanecem na Casa até que tenham a sua situação regularizada no país, o que pode durar de três a seis meses. Uma atenção muito especial tem sido dada a casos de tortura, violência, tráfico de pessoas e rejeitados pelas famílias devido à sua orientação sexual.

Nas grandes deslocações de pessoas a que o México assiste, a Casa de Mambré aparece com um sinal de esperança para os sem lugar. Pela multiplicidade das suas competências inaugura novas e exigentes formas do trabalho missionário das irmãs e dos numerosos grupos de técnicos e especialistas que com elas colaboram.

3.2 Uma experiência com migrantes e refugiados na Diocese de Rottenburg-Stuttgart

Em Weingarten há um complexo de mosteiros beneditinos com mais de mil anos, que os monges, por falta de vocações, tiveram que abandonar, há 12 anos.

Em 2013, ano em que começaram os primeiros relatos sobre os refugiados que estavam a morrer no Mediterrâneo, o Bispo local, Dom Marlene E. Wildner, decidiu abrir esse complexo de mosteiros vazios para servir de abrigo aos refugiados.

Homens e mulheres, de diferentes proveniências e horizontes, procuram, aqui, curar as suas feridas e recebem ajuda para a compreensão da nova língua e para encontrar um trabalho digno.

Estas notas são apenas uma pequena amostra de múltiplas experiências de transformação que perpassam na Igreja. Não nos quedemos em Jerusalém… no Templo e entre os Doutores da Lei…. Só no caminho se podem ver as estrelas.

Foto da capa: Abadia de Notre-Dame-du-Désert, Foto de Grentidez, 2012 | Commons Wikimedia

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