Acabado de chegar ao ermitério de Montepaolo, no atual distrito de Cesena Forlì. como conseguirá António, apaixonado pelas Escrituras, ler a tão amada Palavra? Procurando-a em toda a Criação…
Nesta altura da história, as coisas já não são tão claras, nem tão óbvias. A Palavra de Deus que António tinha aprendido a ler e a compreender nas ricas bibliotecas dos mosteiros portugueses por onde tinha passado, será ainda a mesma, aqui e agora?
Antes, tinha à sua disposição, além do tempo e dos lugares físicos, ou seja, horas e espaços próprios para esse efeito, livros, resumos e comentários. Também tinha confrades igualmente eruditos e instruídos, o que é muito bom para comparar e aumentar o conhecimento bíblico. Naqueles mosteiros, a Palavra de Deus tornava-se óbvia, habitual, quase parte da paisagem. Nem era necessário procurá-la, porque estava à mão, disponível, em qualquer lado. Se precisavas, sabias onde encontrá-la: a citação certa, o versículo exato. Mas isto era passado…
Agora, no ermitério de Montepaolo, um pobre abrigo de pedras e ramos partilhado com outros frades, algumas grutas húmidas onde podia refugiar-se para um pouco de silêncio e solidão na companhia de Deus; aqui não havia livros de espécie alguma, talvez nem mesmo uma Bíblia completa.
Onde é que podia, então, encontrar a Palavra de Deus?! Onde poderia lê-la?
É verdade que António possuía uma excelente memória; todo o esforço feito a seu tempo para assimilar as Sagradas Escrituras, tornava-se agora particularmente útil. No entanto, acontece que ele tinha ingressado numa família religiosa que não tinha uma boa relação com os estudos e olhava com desconfiança para os livros em geral, ao ponto de estabelecer na regra a proibição de os possuir. A pobreza e a caridade eram, por estes lados, bem mais apreciadas do que os livros: certamente, os confrades, reunidos ao redor da lareira da ermida numa noite fria, terão contado a frei António aquele episódio do Irmão Francisco que, na Porciúncula, não tendo mais nada para dar a uma pobre mulher, doou-lhe o único livro do Evangelho que estava no altar da pequena igreja.
Que valor não teriam aqueles manuscritos, se calhar pintados com iluminuras! Ou, então − ainda pior! − aquela outra vez, quando havia um único Novo Testamento na comunidade e o que fez o irmão Francisco? Rasgou todas as páginas e deu uma a cada frade! Uma loucura!
No entanto, tudo tinha começado quando Francisco, Bernardo e Pedro tinham ido à igreja de São Nicolau, para “perguntar ao Senhor” o que deveriam fazer a partir daí, e fizeram-no, de facto, abrindo o Evangelho. Talvez a solução estivesse então escondida numa outra estranha indicação que Francisco deu aos seus companheiros: recolher do chão todos os fragmentos de papel e guardá-los com cuidado e devoção. Não, não se tratava de uma atitude ecológica, típica do nosso tempo; é que o santo de Assis estava seriamente convencido de que em cada fragmento, em cada página escrita, podia esconder-se a própria… Palavra de Deus!
O nosso António, apaixonado pela Bíblia, podia ficar sossegado: agora tinha ainda mais mais Palavra disponível! Podia procura-la, ouvi-la, até mesmo “lê-la”, na criação que tinha à sua volta, no murmúrio da floresta, no assobio do vento nas árvores, no cântico do céu estrelado da noite; nos acontecimentos dos homens e mulheres com que se cruzava ao longo dos caminhos do mundo, quer fossem doutos e teólogos ou gaiatos pobres e sujos a brincar na lama, mulheres no auge da sua beleza ou doentes acamados no leito dos seus sofrimentos, camponeses mal cheirosos ou velhos nas tascas; em cada momento da vida, numa festa alegre e barulhenta ou durante um triste funeral. Todos mereciam uma palavra, mas, ao mesmo tempo, todos tinham uma palavra divina para dizer.