Um artigo de Gilberto Borghi e Chiara Gatti, messaggero di sant’Antonio
É no “estar” que se manifesta a proximidade para com os que sofrem. Assim fazia, também, António que, antes de ser o Santo que todos conhecemos, foi um homem capaz de partilhar a dor, manifestando a todos, inclusive através da linguagem dos milagres, o amor de Deus.
A morte. Há já vários anos que ensino Educação Moral e Religiosa Católica e quanto mais entro em diálogo com os alunos, mais me apercebo que, nos seus discursos, o tema da morte sai pouco ou, apenas, como um lugar-comum, tratado quase como uma conversa de café, enfrentado friamente sem qualquer sentimento ou emoção próxima. Mas, da morte que se torna próxima, que te faz sofrer porque atinge um ente querido e te mete medo porque é o fim de tudo, dessa grande angústia não é possível falar…. É como se se tratasse de um tabu pesado.
Por isso, o episódio ocorrido numa aula alguns meses antes, ficou bem gravado na minha memória como um marco que iluminava o que os alunos tinham dentro de si e que nem sequer se davam conta.
Num sábado de manhã, pela terceira aula, a mãe de uma aluna chegou à escola. Chorava: devia avisar a filha de que o pai tinha morrido pouco antes de um ataque cardíaco fulminante e que tinha de a levar para casa. A menina foi chamada e deixou a escola imediatamente. O professor da quarta aula teve de dar conhecimento do acontecimento à toda a turma que, à quinta aula, quando eu cheguei, ainda estava em estado de choque. Assim, quando entrei, a minha colega deu-me um toque, abanando a cabeça, como para me dizer: “Vê lá, diz alguma coisa… Eu tentei, mas não consegui!”.
Eu tinha entrado quase na ponta dos pés, sussurrando um bom dia, ao qual poucos responderam, espalhados em grupinhos pela sala.
Alguns falavam e choravam com compostura, algumas raparigas estavam abraçadas e pareciam penduradas umas nas outras, ao ponto que não se distinguia onde terminavam os braços de uma e começavam os da outra; outros estavam sentados na sua carteira e fingiam manter um bom comportamento diante de um caderno aberto; outros ainda olhavam pela janela como se procurassem uma evasão àquele clima insuportável.
Depois de alguns momentos, em que eu próprio experimentei um forte desconforto, afinei sonoramente a minha voz e o som gutural que me saiu produziu, inesperadamente, um momento de atenção que os tirou da nuvem de confusão em que estavam mergulhados. Olharam para mim e obedeceram imediatamente quando lhes pedi para colocarem as cadeiras em círculo, afastando as carteiras.
Toda esta uma operação durou pelo menos cinco minutos e revelou-se um exercício útil para aliviar alguma tensão. Depois de estarmos todos sentados e posicionados tentei pedir que alguém, com calma e serenidade, me dissesse o que tinha acontecido.
De facto, eu já sabia o que tinha acontecido, mas era importante que fossem eles a contá-lo, num ambiente próprio em que confiassem.
Foi a Júlia, uma das melhores amigas da rapariga que tinha perdido o pai, que tomou a iniciativa. Depois de concluir pormenorizadamente o relato, a Júlia, para meu espanto, acrescentou:
Não sei, prof., eu nunca tinha pensado na morte, mas hoje tocou-nos muito perto. Não sei como é que a Sara irá ficar pois nunca mais voltará a ver o pai: eu, no seu lugar, enlouqueceria… Eu já sinto falta dele quando está fora para trabalho por mais de três dias… Eu gostaria de ligar à Sara, mas não sei o que dizer, porque nunca me aconteceu coisa semelhante e sinto-me como culpada. Talvez seja insensível, não sei!
Ana, outra amiga do grupinho dela, respondeu:
Não acho que tu sejas insensível, só que ainda não passaste por esta situação. No ano passado, a minha tia, irmã da minha mãe, morreu. Eu gostava muito dela, porque ela era mais nova do que a minha mãe e fazíamos juntas muitas coisas, ela era muito querida e simpática. Eu fiquei muito doente e ainda hoje sinto muito a sua falta!
Interveio, também, o Diogo, que em geral falava muito pouco:
Para mim a morte é uma grande chatice, pois eu não concordo que alguém esteja bem, trabalhe como louco toda a vida e, depois, no auge… zás: um corte e tudo se acabou! Para mim esta coisa faz-me enlouquecer, ao ponto que iria partir tudo! Só que, depois, nada iria mudar…
A cada intervenção dos companheiros, os outros anuíam ou davam sinais que não concordavam; porém, notei que, entretanto, tinham parado de chorar e já não estavam encolhidos sobre si mesmos como antes. Especialmente as raparigas, mesmo com os olhos doridos, cada uma agora sentada na sua própria cadeira, mantinham a cabeça erguida e, por vezes, intervinham acrescentando pequenos flashes sobre como a Júlia poderia estar a sentir-se ou partilhando os seus pensamentos sobre o que se poderia fazer por ela naquele momento.
Aos poucos, tomei a palavra, como se penetrasse lentamente nos seus discursos, sem dar a impressão de que tinha algo mais a dizer sobre o assunto.
Pareceu-me que a coisa mais sensata era virar a nossa atenção sobre a forma como juntos poderíamos manifestar à Júlia a nossa proximidade, para lhe fazer sentir o nosso afeto e o nosso calor.
O tempo da aula terminou rapidamente, apesar de ter começado num ambiente bem pesado e, mais uma vez, experimentei que a forma como nos colocamos ao serviço dos alunos, facilita o diálogo entre eles e ajuda-os a narrar as suas experiências e os seus pensamentos com liberdade.
Esta é a fórmula vencedora para se sentirem acolhidos e encorajados a não se afundarem nos próprios problemas. Avizinhava-se para eles um fim-de-semana exigente, no qual teriam de contactar a Júlia, para quem a vida tinha mudado de rumo tão inesperadamente.
À saída, a minha colega de Português, que estava à minha espera, levou-me à parte e imediatamente me interpelou:
Então, tu que és o professor de Religião, conseguiste consolá-los? Eu, se estivesse no teu lugar, teria falado sobre o Paraíso e teria dito que certamente o pai da Júlia já lá estaria… por isso a Júlia deveria estar tranquila…
Olhei para ela com espanto, e escolhi as palavras certas para lhe responder:
Acredito no paraíso e na vida eterna, mas o facto de eu ensinar Religião não significa que tenho todas as respostas no bolso sempre prontas a usar. Tentei sintonizar-me com as perguntas deles e fazer com que se sentissem menos sozinhos perante esta grande dor… Não achas que também Jesus teria feito o mesmo?
Ela olhou para mim como se olhasse para um herege e disse-me:
Sim, claro, mas também muitos santos perante a morte procuraram ajudar o homem e fizeram-no concretamente, por exemplo lembro-me de um milagre de Santo António que ressuscitou uma criança afogada, devolvendo-a à mãe!
Sorri-lhe:
Eu também, se pudesse, ressuscitaria o pai da Júlia, tirando-lhe esta imensa dor… No entanto, penso que até os santos de quem falavas foram, acima de tudo, capazes de estar ao lado das pessoas perante o grande mistério que é a morte: acho que este é o milagre do maior amor. Só quando aprendemos a estar com eles e para nós isso significa estar perto dos nossos alunos, então poderemos falar sobre aquilo que um crente espera depois da morte, não achas?
O diálogo acabou aí: ela olhou para o relógio, já era tarde… esboçou uma saudação, meia irritada, meio envergonhada, virou-me as costas e, naquele corredor, senti-me mesmo muito só: como é difícil “estar” quando a dor real te bate à porta, difícil não só para os jovens, mas também para os adultos.
Foto da capa: O sinal. Andrea Trebbi, Santo António reanima a criança afogada, ícone, detalhe (1999). Foto Giorgio Deganello / Arquivo MSA.