Como vice-presidente do Centro de Reflexão Cristã (CRC), coube-me organizar uma homenagem a Manuela Silva (1932-2019), co-fundadora e primeira autografante dos estatutos de criação do CRC, datados de 5 de outubro de 1975.
O CRC cumpre neste ano de 2020 os seus (primeiros) 45 anos de existência e a celebração, para ser festa e para ser justa, não podia começar de outra forma senão com este tributo, que teve lugar no dia 11 de janeiro, na Paróquia de São Tomás de Aquino, em Lisboa.
Para o cartaz-programa do encontro, escolheu-se uma fotografia “da internet” (com muita pena nossa, não foi possível identificar o autor da imagem) e uma frase que o jornal online 7Margens tinha escolhido para título de um dos artigos publicados em outubro, aquando do falecimento de Manuela Silva: “Diz aos meus amigos que gostei muito de viver!”.
Como desejamos este último suspiro! Uma despedida simples, o pensamento nos amigos e na vida, na vida partilhada com esses amigos, tocada pela alegria e pelo amor.
Até ao final, porventura ultrapassando “o final”, Manuela Silva transformou a vida dos que a rodeavam, sobretudo porque ela se deixava transformar pelo que via à sua volta.

No CRC, mais tarde no Centro de Estudos para a Intervenção Social, e noutros fóruns, Manuela Silva promoveu estudos sobre a pobreza, a igualdade salarial entre homens e mulheres, o combate às desigualdades e o desenvolvimento, sendo considerada “o rosto português de combate à pobreza”. Manuela Silva foi Secretária de Estado para o Planeamento no primeiro Governo Constitucional, tendo-se batido por políticas públicas que assegurassem a satisfação das necessidades básicas dos cidadãos.
Ao longo de toda a vida, foi também uma ativa militante católica, bateu-se por uma participação ativa das mulheres na vida da Igreja, exercendo funções de destaque em movimentos como o Graal, movimentos intelectuais católicos como a Pax Romana, a Juventude Universitária Católica ou a Comissão Nacional Justiça e Paz. Em 1990, criou a Fundação Betânia e, em 2018, foi uma das fundadoras da Rede Cuidar da Casa Comum.
Naquela manhã de janeiro, com muito, muito frio, mais de setenta pessoas ouviram intervenções preparadas sobre Manuela Silva e partilharam informalmente memórias da amiga, da colega, da orientadora, da chefe, da vizinha…
Era para nós como um xaile
Uma senhora, de porte pequeno e sorriso aberto, disse-me fazendo o gesto de quem cobre os ombros: “Era um xaile! A Manela era para nós como um xaile, a aquecer-nos, a abraçar-nos, a proteger-nos”.
Não conheci Manuela Silva e (à exceção daqueles publicados no Mensageiro de Santo António) comecei apenas há poucos meses a ler alguns dos seus textos: livros, artigos, relatórios, estudos. Nada de pessoal me ligava a esta mulher. Uso propositadamente o pretérito imperfeito porque me refiro ao passado. Sem ter tido contacto pessoal com ela, Manuela Silva tornou-se presente através dos outros, dos seus amigos, dos que ela abraçou, acompanhou, orientou e até contrariou, para logo os deixar livres e confiantes em cada percurso singular.
Um luminoso exemplo vital
Não acho que devamos “endeusar” as pessoas. Os indivíduos são interessantes, importantes, estimulantes, na exata medida da sua humanidade.
Percebi, em e-mails de poucas linhas, em conversas de poucos minutos, em textos de breves palavras, que Manuela Silva deixou aos que com ela privaram um luminoso exemplo vital. E comovi-me, comovo-me, com este legado de coragem, de perseverança, de confiança e tantos substantivos positivos que poderia encontrar. Substantivos, porque são a essência boa da vida em comunidade, a essência boa da vida útil aos outros, da vida de serviço, de partilha, de paz e de pão.
Trago por isso a memória de Manuela Silva para estas páginas, quiçá repetindo o que já foi dito em números passados da revista e noutros lugares.
Em todo o caso, acreditando que, como eu, o leitor se inspirará no exemplo desta mulher, nele beberá algum ânimo, certo conforto para os dias de menos entusiasmo. Acreditando também que invocar Manuela Silva é tornar presente tantas outras pessoas que fizeram o bem, agiram no concreto, acolheram e amaram, transformaram os seus contextos, salvaram os dias de serem sem esperança e o futuro de ser difuso.
Manuela Silva escreveu sobre essas pessoas num dos seus textos mais citados recentemente, “Vidas luminosas” (incluído no volume Ouvi do Vento, de 2009), mas os amigos dizem que nele, sem querer, a autora se autorretrata: alguém “cuja presença é, por si mesma, um feixe de luz que irradia, tanto para os lugares onde habitam como para as pessoas à sua volta […] pessoas com quem nos sentimos bem”.
São como luz, são como um xaile
Penso no sorriso da senhora e do seu xaile de amizade e ternura. Uso e deturpo uma quadra de Fernando Pessoa:
Esse xaile que me arranjaste
com que pareço mais alta
dá ao meu corpo esse brio
que à tua coragem não falta.
You must be logged in to post a comment.