Espinho de gato, garra de rosa

Depois de, no mês passado, me ter debruçado sobre o cão, faço-o agora sobre o gato. Afinal, são, por excelência, na nossa cultura, os animais domésticos, companheiros de casa.

O cão foi domesticado primeiro. Ter-se-á aproximado dos seres humanos na tentativa de obter comida e passou a coabitar com eles, participando em caçadas e na defesa das famílias. Acostumou-se, pois, há mais tempo, aos nossos desatinos e caprichos.

O gato, porém, chegou depois. Ter-se-á, por sua vez, juntado aos povoados humanos, onde as suas capacidades de predador o revelaram um auxiliar precioso no controlo de répteis, insetos e roedores, em terra firme e em navios. O facto de ter chegado depois faz toda a diferença.

Fidelidade canina

Muitas histórias há de cães maltratados pelos donos, que não se voltam contra eles nem os abandonam. Permanecem e procuram agradar ao seu humano predileto, conquistar o seu apreço. Não é à toa que se diz de alguém que é de uma fidelidade canina.

Esta expressão quase que humaniza o animal e põe a nu a mera animalidade da pessoa que não consegue ser fiel. É certo que um animal é um animal e uma pessoa é uma pessoa − o que se passa dentro de um e de outro não se equipara. Contudo, conseguimos vislumbrar no afeto canino uma metáfora do amor incondicional.

O que é divertido a respeito do gato é que sucede exatamente o inverso. É certo, o gato é doméstico; mas não por inteiro − é-o apenas em parte. Nele permanece o bicho silvestre cujo comportamento consegue sempre espantar-nos.

O afeto do cão da casa pelas pessoas com quem convive é terno. O do gato também. Contudo, porque nele subsiste o animal selvagem, tem um quê de surpreendente, como surpreende um animal selvagem que consente na nossa aproximação.

Assim, surpreende-nos a javalina que, segundo a lenda, se tornou defensora e guardiã de Santo Antão do Deserto, ermita, depois de este, compadecido, curar as suas crias da cegueira.

Surpreende-nos a corça que permitia que Santo Egídio, também ermita, se alimentasse do seu leite.

Surpreende-nos o irmão lobo, respondendo ao apelo de São Francisco de Assis, o qual, tocando-o e falando-lhe, o amansava, terminando a guerra entre os aldeões e a terrível fera.

O gato não tolera maus tratos

O gato conserva o seu quê de selvagem. Gato que é gato não ama porque sim. Torna-se arisco quando as coisas não lhe agradam. Não admite maus tratos. Foge de quem não o trata bem. Não mostra grande entusiasmo em aprender truques. Se se irrita, põe as garras de fora e sopra como uma serpente. O afeto incondicional não existe aqui. Ou sucede a sintonia, e esta requer uma aproximação entre o ser humano e o felino, ou o gato não se vai esforçar por mostrar, a quem não se esforça por ele, como pode ser encantador e como é agradável tê-lo por perto.

Quantas agressões em namoros poderiam ser prevenidas se, qual felino, a vítima repudiasse imediatamente o agressor aos primeiros sinais?

Um gato é como uma rosa

A domesticação dos gatos terá começado há cerca de 9.000 anos, no Próximo Oriente e depois no Egito. Os gatos seguiram os humanos por toda a parte, desde as férteis planícies do Egito, até aos barcos dos vikings. Múmias egípcias no Bristish Museum, foto Mario Sánchez, 2010, commons.wikimedia.org.
A domesticação dos gatos terá começado há cerca de 9.000 anos, no Próximo Oriente e depois no Egito. Os gatos seguiram os humanos por toda a parte, desde as férteis planícies do Egito, até aos barcos dos vikings. Múmias egípcias no Bristish Museum, foto Mario Sánchez, 2010, commons.wikimedia.org.

Note-se a semelhança entre as suas armas de defesa. Falamos na garra do gato e no espinho da rosa. No entanto, a forma da unha felina é muito semelhante à forma do espinho da rosa. É, aliás, de tal modo parecida que podemos até trocá-los e dizer: as patas felinas têm espinhos; os caules das rosas têm garras.

Tocar um gato é como tocar uma rosa. Não deveremos fazê-lo de qualquer maneira, mas com calma e jeito − ou poderemos ganhar não um amigo mas apenas arrependimento enfeitado por umas quantas mazelas. Com sensatez e prática, a aproximação das nossas frágeis mãos a estas fenomenais armas de defesa torna-se de tal modo hábil que deixa de haver razão para medos − pegamos, na flor e no felino, sem riscos.

Gatos e rosas são elegantes, delicados e harmoniosos. Estão connosco há milénios. Encontramos representações de gatos na arte antiga, da Europa ao Norte de África e à China.

As rosas, cultivadas desde tempos imemoriais, são referidas em todos os lugares onde existe também o gato. Numa multiplicidade de cores, tamanhos e feitios, continuam connosco enquanto seguimos o nosso caminho. Um e outro conservam a garra que é tão deles e que anuncia que a beleza pode ser olhada por todos, mas só se deixa ver e experimentar por quem a ela se dispõe.

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