Erguer dias mais justos

Todos os dias erguemos o rosto e encontramo-nos diante de uma parte de nós que apenas vive no espelho. Não somos realmente nós, mas não é uma outra pessoa. É uma parte que aparece intermitentemente, à qual nem sempre damos atenção. Aliás, a pouca atenção que nos merece é normalmente fugidia, um momento de pausa, olhos nos olhos, um esgar, quase sorriso.

Há uma parte de nós que apenas vive no espelho

Todos os dias erguemos o rosto e o corpo e encontramos no espelho essa outra parte de nós. Mas deixamo-la lá e seguimos caminho e erguemos também os dias, com o nosso trabalho, com o empenho que colocamos nas tarefas necessárias e mecanizadas do quotidiano doméstico ou na fábrica, no armazém ou ao balcão.

Erguemos os dias e nesse esforço se vai a vida vivendo, às vezes com alegria, às vezes com confiança, às vezes com justiça, às vezes com paz. Sobretudo, com futuro. Porque o hoje da vida se vive com os olhos postos no futuro.

Todavia, nem todo o futuro é sinónimo de confiança, de justiça e de paz. Desde logo, há futuros sem futuro, sem esse rasgo de esperança que todo o horizonte deve ser.

Nos mesmos dias em que erguemos o rosto e nos encontramos diante de uma parte de nós que apenas vive no espelho, há pessoas que não têm força para se erguer, não têm força para suster esses olhos nos (seus) olhos, pessoas cujos rostos não conhecem outro esgar que não o da dor.

25 de novembro – Dia internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres

No mês em que assinalamos o dia internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres (instituído pelas Nações Unidas em 1999 e celebrado a 25 de novembro), gostaria que olhássemos no espelho e que nessa parte de nós pudéssemos ver também o outro. Ou melhor, a outra: aquela mulher que não tem força para se erguer, que não tem força para suster o olhar e cujo rosto é sinal de dor.

Criança dizendo não à violência.
Criança dizendo não à violência.

E depois gostaria que pudéssemos olhar não só para o espelho, para os outros olhos, mas também para dentro de casa e para dentro de nós: o que vemos? Vemos futuro e confiança e paz?

Em novembro, cada ano, multiplicam-se as campanhas nos meios de comunicação social sob motes bem chamativos: “nem uma menos”, “nem mais um minuto de silêncio, “ninguém pode ficar para trás”. É bem claro o que estes motes significam – um apelo à vida, um apelo à palavra, um apelo à comunidade – mas será que entendemos que nos são dirigidos? Fechamos os ouvidos, os olhos e as mãos?

Na Europa, 43% das mulheres sofrem violência por parte de um parceiro

Falar sobre violência contra as mulheres não é um tema aborrecido, do passado ou de fora. É um tema urgente, presente, de dentro. Os dados objetivos mundiais são avassaladores: as estimativas das Nações Unidas apontam para que 35% das mulheres em todo o mundo tenham vivido alguma situação de violência ou abuso sexual; na Europa, 43% das mulheres sofreram violência psicológica por parte de um parceiro.

Mais de 88% dos agressores são homens entre os 26 e os 55 anos

Não estamos a falar apenas do que acontece num outro hemisfério, numa outra longitude. Estamos a falar da família ao nosso lado, do colega de trabalho, do amigo, do pai. Sim, é preciso dizer sem medos: estamos a falar deles (mais de 88% dos agressores são homens entre os 26 e os 55 anos).

E não, os homens não são todos culpados e sim, também há homens que são vítimas e mulheres que são violentas. Mas é preciso dizer sem medos: esses casos são as exceções. A violência contra as meninas e as mulheres existe no contexto de uma sociedade ainda muito machista, por vezes já quase imperceptivelmente machista, que nos faz esquecer que há muito a fazer nessa área.

Se parece que estou a exagerar, façamos um exercício simples e perguntemos a amigos e familiares: “O que é que fazes para evitar eventuais agressores quando vais para casa sozinho/a?” Apontemos as respostas no papel, dividindo-as entre respostas de homens e respostas de mulheres. Não será com surpresa que veremos unicamente nas respostas das mulheres ideias como: seguro nas chaves como eventual arma, uso a mochila no autocarro para me proteger dos encostos indesejáveis, ando sempre com o telemóvel na mão, nunca vou correr sozinha à noite, não faço sempre o mesmo percurso, nunca levo os auscultadores postos, vou a conversar ao telefone para estar acompanhada, paro para fingir que estou a atar os sapatos e ver se vem alguém, não entro no elevador com um desconhecido… entre tantas outras estratégias. Pergunte o leitor à filha, lembre-se a leitora do que fazia ou faz.

Não estou a exagerar

Em Portugal, as estatísticas continuam a contar através da frieza dos números uma realidade que é bárbara e evitável. A violência contra as meninas e as mulheres pode evitar-se com a formação esclarecida, persistente, transversal, nas escolas e nas coletividades, no trabalho, na família, nos media. A educação das comunidades é a chave do poder: não o poder, substantivo relacionado com autoridade, mas poder, verbo que indica ser capaz.

A educação, porém, é um processo e a urgência da situação pede para agir no agora. Agora, é tempo de erguer o olhar. Não já para o espelho à procura da outra parte de nós, mas para a realidade em que fincamos os pés prontos a caminhar, lado a lado com mulheres e homens bons.

Agora, é tempo de erguer um olhar mais empático e certamente de erguer dias mais justos.

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