Abri a janela para o novo dia, seguindo Debussy e a sua rêverie. O meu olhar misturou-se à natureza de pedras altas, vestida de um verde-rápido que eu jamais havia visto. Senti-me em um paraÃso perdido, onde poucos tiveram acesso.
O olhar que atravessou a janela, talvez não fosse meu e eu o tivesse roubado de outros olhos que não conheço. A janela larga, era o horizonte que se estendia para que eu, da minha ilha, pudesse ver a outra ilha. Muito mais pujante e selvagem. Simples em tudo. Viva. Era como se fosse um ponto a flutuar livre e sem nada precisar. O meu olhar contido em horizontes de trabalho e cotidianos de pressa, pousou ali – como se fosse um presente da vida ou um sinal de alerta para outros sentidos.
Enchi-me de liberdade: os meus olhos viram o mar profundo, em tudo vivo, em suas brincadeiras. Golfinhos e peixes suspiravam os seus sonhos, fazendo de conta que estavam a voar com pequenos pássaros de um azul-distante. Eles riscavam o céu em sua infinitude. Talvez ali, no paraíso cravado no Oceano Atlântico, despontasse sobre montanhas basálticas uma vida ancestral.
Sobre o meu olhar, posso dizer que se destinou, desde cedo, ao longe…ao que não se alcança de imediato e busca a contemplação. É um olhar de estranheza e ao mesmo tempo de intimidade. Concluí, tenramente, que o olhar não pode ser prisão e tem de saber colher os tantos sentidos do mundo. Tem de saber ler o mundo.

Concluí, tenramente, que o olhar não pode ser prisão e tem de saber colher os tantos sentidos do mundo. Tem de saber ler o mundo.
Ao pensar sobre o assunto, senti que o meu olhar, aportado na música e em sinestesias primitivas, “engolia” a paisagem feita de montanhas e mar. A minha mirada do dia, naquele dia, seria para um cotidiano desenhado entre memória e futuro.
Ali mesmo, debruçada na janela, revisitei os lugares da infância – a casa e a sua “lonjura”, reatualizadas naquele olhar estendido – ora fora, ora dentro – como se fosse o balanço do mar. Lembrei-me da minha própria infância feita à beira da janela, a querer correr pelo jardim… esconder-se no côncavo da árvore de acácias vermelhas, que para mim, era uma escada que levava ao céu. Hoje, distante daquele tempo, repouso na eternidade das minhas invenções. Sentada entre as folhas e as flores daquela “minha árvore”, eu me eternizava sem tempo futuro. Era outro tempo. Sem a lógica dos ponteiros.
Eu não precisava de muito, apenas de esconder-me ali. Fundar mundos no mundo, o que só era interrompido com a voz da minha mãe: — menina, desça já daí. O sereno já vem. A vida serenava na vibração da sua voz.
Eu respondia-lhe: — só mais um bocadinho e desço. O bocadinho, significa o melhor daquele pedaço de dia.
A janela da sala era outro repouso, outra maneira de viajar no tempo. Tinha moldura vermelha – era uma linda janela envidraçada e por isso, mesmo sem abri-la, eu conseguia fugir para “engolir” o mundo com o olhar. Escutava muitas vezes, as visitas que vinham a casa, perguntarem à minha mãe: — A menina não fala? É timidez? E a minha mãe, mestra no ensino sobre o olhar, respondia: — Fala, fala…mas ela gosta mesmo é de olhar. E inventa muita coisa, mas não me preocupa. Quando ela for adulta terá muitas paisagens para recordar. Histórias para contar.
A minha mãe era uma porta para o infinito. Cuidava de tudo com as suas mãos longas, ágeis, fortes e “fazedoras”. Eram mãos aquecidas pelo afeto que colocava em tudo. Ela era como os versos de Pessoa:
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa.
Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Odes, de Ricardo Reis. Lisboa: Ática. 1946 – imp.1994, p.148
Ela era assim, inteira. Era a casa e a sua extensão. Era mãe, mãos e mundos. Era “morabeza”, como dizem os cabo-verdianos. Era todos os nomes em uma só mesa, era Maria. Ela, sem dúvida, ensinou-me a olhar. De tal forma que tudo que olho, mesmo que já tenha visto, é como se fosse pela primeira vez. Logo, o novo está sempre a entrar na minha temperatura e corrente sanguínea. O novo sempre novo, onde existe um lago iluminado por uma lua que brilha inteira.
Eu fui uma criança frágil e por isso, muitas vezes, era impedida de correr, tomar banhos de chuva, dar banhos às bonecas e fazer o que as outras crianças faziam. Enquanto a minha irmã, mais nova um bocadito, corria livremente e molhava-se na chuva, eu contemplava a sua infância que se fazia aos saltos e esconde-esconde. Por outro lado, permitiam-me olhar da janela, o espetáculo da brincadeira. A contrapartida − a minha mãe deu-me asas para o olhar e, desde então… nunca parei de “engolir” o mundo com os olhos.
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