… continuação do número anterior
Ao mesmo tempo que contemplo o mar, as montanhas, as memórias e as mãos da mãe: vejo-a…
(Está a arranjar um lindo ramo de flores que colheu do nosso jardim. Mãos ligeiras que buscam a estética do afago. Que linda jarra de flores! Tão linda que, também, era desejada pela vizinhança – ela, que era afeto em tudo, ia ao jardim e voltava com outro ramo para a casa da vizinha. Depois, cuidava de mim e da minha irmã, protegia-nos dos assombros e do medo. Ninguém conseguia fazer o leite achocolatado como ela…).
A mãe nos olhava. Mesmo depois que seguimos vida afora, ela nunca deixou de nos olhar – tinha sempre os olhos esticados em nossa direção.
Todas estas memórias surgiram com o abrir desta janela, quase inusitada, mas também porque tenho me preocupado com a forma de como as crianças e os jovens têm sido ensinados a olhar o mundo; qual oportunidade que têm para a contemplação; que tempo têm para “engolir com o olhar” os assombros do mundo; de como olham as realidades com as quais se confrontam todos os dias… Lembro do olhar das minhas crianças, de ontem e de agora, ao verem uma flor, uma borboleta…era e é, sempre, de espanto. De descoberta.

Que tempo têm, hoje, as crianças para “engolir com o olhar” os assombros do mundo? Como olham as realidades com as quais se confrontam todos os dias?
O olhar pode ser a extensão que nos traz o outro para dentro, porque o olhar está em nós: no corpo como extensão do mundo.
É preciso alimentar estes primeiros olhares de voos, valorizando o espanto por tudo que é simples e natural. O belo nos rodeia de muitas formas e adentra nos nossos sentidos, desde o nosso primeiro abrir de olhos – tendo forma, volume, textura, cheiro, cor, sabor, som e pele. Tudo revestido de palavra, mesmo quando esta não consegue nomear o indizível.
Espero que toda a sinestesia do mundo invada o olhar das crianças e dos jovens, sendo um convite para a festa existente na natureza; na casa, no convívio com os familiares e amigos, no olhar que pousa sobre a mesa e se deixa acariciar pela simplicidade das flores, perfumadas e vestidas de veludo. Há tanto e tanto no olhar de espanto de uma criança! Há tanto e tanto no olhar perdido dos jovens que só “navegam” nas realidades virtuais e instantâneas… há tanto…
Tenho lidado com muitos jovens adultos com síndrome de pânico, ansiedade, angústia e depressão. Alguns confessam que desaprenderam a estar com o outro; que, estranhamente, preferem visitá-los nas redes sociais… que forjam identidades com o objetivo de fazer sucesso. Afirmam que parecem acompanhados, mas sofrem de um vazio, um buraco no meio da alma que não lhes permite desejar o futuro. Muitos jovens estão sozinhos! Estão na festa a verem os outros dançar.
Muitos jovens desaprenderam o sentido que emerge da vida e da boa convivência com o outro. Desaprenderam a aprender sobre o mundo, sobre a ética, os valores e o respeito. Desaprenderam a saber-se e a gostar de si, a partir do que são, sem precisar de acreditar que são melhores quando conquistam a popularidade e o sucesso. É preciso garantir aos jovens o seu lugar no mundo, enquanto singularidade, mas também expansão.
Considero que a educação deve trabalhar no sentido de educar para o olhar. Ensinar a olhar deve ser a missão de qualquer pessoa que educa para o bem, em todas as suas dimensões. Não devemos depositar nas tecnologias todo o mal do mundo pois, em muito, elas nos facilitam e reinventam a vida. A problemática é circular e resulta sempre no mesmo: como possibilitamos o seu uso. Quanto tempo as crianças e jovens passam diante dos ecrãs; como os educadores podem determinar a qualidade de vida dos seus educandos e como podem, eles mesmos, terem qualidade de vida…
Sair da discursão filosófica para a prática é imperativo. O estado social precisa tratar de questões da educação para que assim, trate do seu projeto de futuro. Que projeto de futuro pode ter sucesso quando os jovens estão mergulhados em sua falta de perspetiva, em tristeza, ansiedade, medo e depressão? O que eu e aquele que me lê temos feito ou fararemos pela sociedade do futuro? O que temos realizado a partir da nossa janela? Temos colhido flores para encantar a casa da vizinha? Temos aberto a janela para quem não pode correr ou tomar banho de chuva?
As futuras gerações, nativas das várias tecnologias, precisam encontrar no corpo um ponto de extensão para o mundo. Um ponto que lhes sirva de horizonte e montanha. Mar.
O ponto no corpo não é um ecrã pendurado ao pescoço ou agarrado às mãos. Não pode ser. Os telemóveis não podem ser extensão do corpo, do olhar e do pensamento, pois não o são. O olhar pode ser a extensão que nos traz o outro para dentro, porque o olhar está em nós: no corpo como extensão do mundo.
Ensinar a olhar deve ser o ofício diário de cada um de nós, pois quem aprende a olhar nunca mais se esquece de descobrir novos mundos e de sair em busca de novos sentidos.
É possível que as ideias que por aqui deslizam, sejam uma quimera de quem, ainda talvez, ingenuamente, acredite em um projeto de humanidade, no qual a essência da espiritualidade, em seu amplo sentido, pode conceder asas para o olhar − de espanto pelas pequenas coisas da vida. Aquele olhar que viaja para dentro do corpo e descobre a alma de tudo que vê e, como se fosse um vaivém: torna-se espanto, surpresa e alegria.
Era Carnaval. Para mim, um momento de recolhimento, no qual posso abrir algumas janelas e, sossegadamente, rever pandeiros que nunca toquei, fantasias que vesti, bisnagas de água, confetes e serpentinas… mas enquanto o bloco de memórias desfila, anoitece.
Preciso fechar a janela que me trouxe a montanha e o mar selvagens. Antes, preciso vos dizer sobre o meu derradeiro olhar de hoje. Só espanto. Enquanto anoitecia, mesmo com muito vento, desabrocharam lindas orquídeas brancas, entre as pedras da montanha vulcânica, cravada no meio do Atlântico. Nasceram por nascer, mas desabrocharam no meu olhar. Partilho-as com o futuro.
Foto da capa: Janela de casa antiga, Cabo Verde, Ilha do Fogo. Foto Manuela Andrade, 2023.
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