Ecologia revisitada

Referindo-se ao que chama de “atmosfera de morte”, o Pe. Prof. Doutor Joaquim Cerqueira Gonçalves, afirma:[1]

Verdadeiramente, ela é consequência das opções da cultura ocidental, assumidas, aliás, em nome das exigências da razão. Essa morte foi precedida de outras mortes, essas, sim, a verdadeira morte: o esvaziamento do conteúdo qualitativo dos seres; a vitória de alguns, na sua competição egoísta com os outros; a redução da alteridade do passado e do futuro a alguns detentores do presente.

O termo ecologia é um composto hodierno feito a partir dos termos helénicos oikos, casa, e por logia, que se costuma traduzir insuficientemente por estudo ou ciência. O termo logia, por sua vez, relaciona-se com o termo, fundamental, logos, de ampla semântica, mas que indicia isso que se pode dizer como “a colheita do sentido próprio das coisas”, coincidindo com o acto, sempre espiritual, da presença em nós “das coisas”, precisamente na forma do sentido.

Exactamente neste “sentido” não há diferença entre a presença da coisa em nós e isso, esta presença, como sentido. Ainda neste “sentido”, para nós, tudo ou é sentido ou não é coisa alguma. Como é evidente, o uso repetido do termo “sentido” foi propositado porque não há outro modo melhor de expressar isso que é, sem mais e simplesmente, o sentido.

A ecologia não é uma disciplina escolar, não é uma moda social, não é apenas uma atitude perante a natureza, é o modo próprio da relação do ser humano com o mundo

Nós, seres humanos, ou somos sentido como propriamente humanos ou não somos coisa alguma.

Ora, este intróito permite perceber que o termo ecologia se refere ao que o mundo é como unidade de sentido. O mundo é algo de espiritual, em nós, ainda que seja algo mais no que diz respeito ao que nos transcende. Mas o que nos transcende não é por nós percebido de modo algum outro que não seja o do sentido.

Assim sendo, e como acto da humana inteligência, compreende-se a estreita relação que existe entre o mundo como sentido e a cultura, que é o somatório imenso e universal de todo o sentido humano efectivo desde que há humanidade e não há humanidade como tal sem este acto de sentido.

Então, a ecologia é o acto de sentido do mundo ou, melhor, o mundo como acto de sentido. É este o pressuposto ontológico da citação do Pe. Cerqueira Gonçalves apresentada anteriormente. A ecologia não é uma disciplina escolar, não é uma moda social, não é apenas uma atitude perante a natureza, é o modo próprio da relação do ser humano com o mundo, não apenas o mundo natural, mas o mundo como um todo, pois não há qualquer separação entre o ser humano e a natureza: há não apenas uma continuidade e contiguidade, mas há uma imbricação, pois não há ser humano sem dimensão natural própria e irredutível.

O primeiro grande erro humano – não é apenas ocidental – é ontológico e consiste na separação maniqueia entre a humanidade e o restante, a dita natureza, como se houvesse uma descontinuidade ontológica entre estes dois âmbitos, como se constituíssem verdadeiros mundos separados.

Ora, a primeira evidência ontológica é que só há um mundo. De um certo ponto de vista fundamental, todo o mundo é natural, pois nada há nele que não comungue desta necessária dimensão. O outro ponto de vista é precisamente o da cultura.

Todavia, é precisamente a cultura que permite perceber que só há um mundo e que todo ele é, como suporte necessário para a própria cultura, natural. A cultura emerge da natureza e dela vive como seu substrato substancial sem o qual não pode subsistir.

Nem sequer se pode dizer com sentido que a cultura supera a natureza, pois, que superação é essa que necessita do superado para superar o superado? Erro lógico, cultural tolice; mas perigosa tolice.

Perigosa tolice cultural porque imediatamente transforma a cultura em parasita da natureza, ao pôr aquela a negar isso de que depende para reclamar a ilusória superação. A cultura não tem necessidade de parasitar a natureza, pode, simplesmente, literalmente, conviver com ela.

Esta lição de sã convivência é muito antiga, tão antiga quanto, pelo menos, a escrita do velho mito sagrado da criação do mundo por Deus, constante do Génesis. Que é isso que Deus cria durante seis sucessivos dias, sete, contando com o momento de activa contemplação final, senão a possibilidade de sã convivência da coisa natural – o mundo não-humano – com a coisa cultural – a humanidade?

Que outro sentido universal e profundo tem o velho Paraíso, em que tudo estava bem, em que a casa – comum – estava logicamente arrumada, ou seja, em que havia uma inicial perfeita «logia» da «oikia», uma perfeita e integral ecologia?

Antes de quererem tornar-se donos do que lhes não competia, Adão e Eva viviam em perfeita ecológica vida.

Adão e Eva, Michelangelo, Capela Sistina
Adão e Eva, Michelangelo, Capela Sistina

Nenhum desequilíbrio havia. Tudo era perfeito. Repetimos: tudo era perfeito, mesmo que os adoradores do mal queiram pensar o contrário. E são os adoradores do mal que são a figura da tentadora serpente: é a besta predadora que há em nós que a bicha significa.

Pergunta-se: mas para quê esta possibilidade no seio de uma ecologia perfeita? Por que razão haver a possibilidade de introduzir o desequilíbrio ecológico num mundo outrossim perfeito? Por que não garantir protocolarmente no acto de criação que o bem ecológico fosse necessário?

A resposta é desconcertantemente simples – para desespero dos adoradores do mal – porque sem esta possibilidade não poderia haver seres humanos. Poderia haver infinitas outras realidades, mas não seres humanos.

A criação de um outro mundo apenas com seres mecanicamente capazes do bem seria a criação precisamente de um outro mundo. Dele, nunca teríamos conhecimento, porque não é compatível com este em que estamos, melhor, que, como sentido, somos. Num sentido ecológico infinito, pode bem haver tal coisa, infinitas mesmo, como alternativas – infinitas, repetimos – e, no entanto, em nenhuma delas existem seres humanos; delas nunca teremos conhecimento, pois, este implica a estrutura deste mundo em que estamos, que somos, o que exclui qualquer outra.

A perfeição ecológica deste mundo implica a presença da possibilidade da ruína ecológica do mesmo, como possibilidade de o ser humano se integrar com acto próprio na estrutura do mundo. É pela acção do ser humano como acção propriamente humana que este se especifica e é, em absoluto. Sem tal, não há ser humano. Nem sequer se pode saber o que há, pois tudo o que se sabe ou pode saber passa necessariamente pelo ser humano. Não há outro modo; não neste mundo; não como inteligível neste mundo, por este mundo, isto é, por cada um de nós.

Neste sentido, o mundo é antrópico; ecologicamente antrópico, o que não quer dizer que seja antrópico como acto de bestial egoísmo humano.

Antropicismo ecológico e onfalocentrismo cultural não são sinónimos. Todo o possível sentido do mundo passa pelo ser humano, o que não significa que este tenha qualquer direito de posse ontológica sobre o mundo. Apenas tem o direito de relação litúrgica, de serviço, necessário, mas também necessariamente mútuo.

A relação ecológica é uma necessária relação de simbiose entre ser humano e natureza, não uma relação de parasitismo, não uma relação de comensalismo

Numa linguagem mais comum: a natureza como serviço ao ser humano e o ser humano como serviço à natureza. A relação ecológica é uma necessária relação de simbiose entre ser humano e natureza, não uma relação de parasitismo, não uma relação de comensalismo. Sem a relação de simbiose com a natureza, a humanidade está condenada à aniquilação, no que será o último acto de justiça poética do universo. É este o preço final mais elevado da estupidez anti-ecológica que grande parte da humanidade tem revelado e insiste em continuar a revelar.

Pode perceber-se, assim, que, do ponto de vista ontológico, que assume todos os demais, mas sem que lhes ceda a primazia – isto é, nada há no mundo sem preeminência ontológica, perceba-se isto ou não (e é nesta negatividade que radica a negatividade anti-ontológica) –, não há propriamente um mundo a que se acrescente a ecologia, mas que o mundo é ecologia em acto.

Equilíbrio ecológico significa equilíbrio do mundo; desequilíbrio ecológico significa desequilíbrio do mundo.

Note-se que o termo mundo acabado de usar e a realidade para que remete não se limita à designação microcósmica do nosso planetazinho, mas ao universo como um todo. Aliás, este sentido de equilíbrio universal necessário ressalta em obras de ficção científica em que de outros lugares do universo se dirigem à humanidade outras formas de ser que se encarregam de nos corrigir ou eliminar porque estamos a desequilibrar não apenas a remota e insignificante Terra, mas todo o espaço ecológico, que coincide com o universo.

No entanto, e já prevendo o mau uso da capacidade litúrgico-ecológica da humanidade, o mesmo texto que apresenta o mito da criação da perfeita harmonia ecológica e a sua disrupção através dos actos humanos ecologicamente perversos, manifesta, no mito de Sodoma e Gomorra, o que acontece a quem destrói completamente o equilíbrio ecológico: a total destruição, exemplar e brutal, como que manifestando, através do horror, a grandeza do bem em causa e do mal possível.

Ora, o possível da acção do ser humano enquanto liturgia ecológica reveste a forma de economia, termo de construção similar à de ecologia, que mantém a referência à oikia, à casa, mas que substitui o termo logia pelo termo nomia, genericamente entendível como lei, mas com o sentido mais lato de governo.

Se regressarmos à pureza dos actos do paraíso genésico anterior à perversão ecológica, podemos perceber que a ecologia do paraíso é indiscernível da sua economia: é o logos que governa, isto é, cada acto tem em consideração o que é melhor, sempre, indefectivelmente.

O melhor acto possível, sempre: eis a lei, o princípio fundamental do governo, seja do governo individual da pessoa – ética – seja do governo colectivo das pessoas – política.

A economia é, assim, o acto que serve o bem de cada ser e de todos os seres. A economia é indiscernível do bem-comum. Mas o bem-comum é indiscernível de uma ecologia digna do nome: perfeita harmonia de actos entre todos os agentes humanos e entre estes e a natureza.

Então, como é que é possível, sequer, pensar a economia como autêntica inimiga da ecologia?

É, ainda, Cerqueira Gonçalves quem aponta para o fulcro da questão: “a vitória de alguns, na sua competição egoísta com os outros” é a razão de a real economia ser não uma ecologia aplicada ao governo das relações entre os seres, universalmente, mas uma real sucessão e concomitância de actos de predação de uns seres relativamente a outros: de seres humanos relativamente a outros seres humanos, de seres humanos relativamente ao restante dos seres, os não-humanos.

Note-se que a relação de predação, na realidade não humana, faz parte da relação ecológica como acto de equilíbrio e a natureza, a não-humana, nunca vai além do necessário. A humanidade dispõe da capacidade, propriamente humana, da colaboração como meio para governar ecologicamente os seus actos possíveis.

Deliberadamente, o ser humano escolhe não colaborar, preferindo a via da violência, da acção sobre o restante em que se ultrapassa o que é necessário.

Esta violência serve sempre uma vontade de posse de algo impróprio, isto é, que não é próprio de esse que assim age, mas de um outro, humano ou não. O violento, o predador humano é esse que se apropria de possibilidades que não lhe competem.

Ora, tem sido este o padrão básico de relacionamento entre os seres humanos, simbolizado pela apropriação do impróprio feita por Adão e Eva, com a consequência da quebra do equilíbrio ecológico prístino primeiro e com a sobre-consequência do assassinato de Abel por Caim, que representa a retirada irreparável do bem próprio total de um ser humano por outro.

Toda a acção económica que promove não o bem-comum, através da colaboração, mas o bem de algum, único – o tirano – ou de alguns, poucos ou muitos, oligarquia ou maioria – constitui-se como forma predatória, assim, anti-ecológica.

É precisamente contra esta forma predatória e anti-ecológica, que, em última instância, levará à aniquilação auto-poética da humanidade, o Papa Francisco tem procurado alertar as pessoas que queiram não só não ser predadoras, mas que queiram lutar contra a forma de se ser como predador dos semelhantes e do mais.

Lisboa, Dezembro de 2017

[1] GONÇALVES Joaquim Cerqueira, «Em louvor da vida e da morte. Ambiente: a cultura ocidental em questão.», in Itinerâncias de escrita, Lisboa, INCM, 2014, p. 314.

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