De um modo ou de outro, estamos quase todos a tentar voltar à normalidade nas nossas vidas. Confesso que, se por um lado percebo a urgência dessa dinâmica, por outro ela causa-me alguma apreensão. É que o voltar ao normal, sem mais, parece-me problemático.
E digo isto, não só porque nestes poucos meses foram tantas e tão grandes as alterações ao nível da conjuntura nacional e internacional, que me parece muitíssimo difícil, se não mesmo impossível, retomarmos a normalidade a partir do ponto em que ela foi interrompida, como, e principalmente, porque me parece que termos nesta fase o objetivo de simplesmente voltar à dita normalidade interrompida, configuraria aquilo que certamente se poderia apelidar de uma oportunidade perdida.
A situação que vivemos tornou evidente que temos de introduzir alterações nos nossos estilos de vida. Na verdade, já muitos intuíam essa necessidade, mas os tempos e as situações pareciam não proporcionar a oportunidade para iniciar definitivamente as mudanças urgentes e necessárias.
Pois bem, a oportunidade está aí. Em bom rigor não fomos nós que a procuramos, por isso nos apanhou de surpresa, mas compete-nos, agora, saber aproveitá-la bem. E neste processo que critérios utilizar? Em que direção devemos caminhar? Qual deve ser o nosso horizonte?
Os direitos das pessoas, dos povos e dos estados são certamente um critério a ter bem presente. Julgo até que nessa linha já se fazem sentir bem alto as vozes que os reivindicam. E elas não podem mesmo ser caladas. Mas sejamos claros e não tenhamos medo de formular outra questão.
Será que o caminho que temos de percorrer só pode ser realizado tendo como pontos de orientação os direitos? E os deveres? Que papel podem desempenhar nesta equação?
Face à pergunta, e na tentativa de declinar as várias respostas possíveis, vai-se desenhando, em mim, uma orientação fortemente inspirada pela leitura do nº 10 da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. Depois de ter identificado o individualismo egoísta como sendo o grande risco do mundo atual – e como é certeiro este diagnóstico mesmo para os tempos presentes –, o texto avança com uma proposta que, sinceramente, me parece igualmente apropriada para o momento que vivemos:
A proposta é viver a um nível superior, mas não com menor intensidade: “Na doação, a vida se fortalece; e se enfraquece no comodismo e no isolamento. De facto, os que mais desfrutam da vida são os que deixam a segurança da margem e se apaixonam pela missão de comunicar a vida aos demais”. Quando a Igreja faz apelo ao compromisso evangelizador, não faz mais do que indicar aos cristãos o verdadeiro dinamismo da realização pessoal: «Aqui descobrimos outra profunda lei da realidade: “A vida se alcança e amadurece à medida que é entregue para dar vida aos outros”. Isto é, definitivamente, a missão».
Interrompo a citação para sublinhar a dinâmica do dom que aqui é apontada. Temos direitos? Sim! Mas também temos, atrevo-me a dizer, sem ter medo de assim o chamar, o dever de cuidar da vida uns dos outros e o de comunicar vida aos demais.
Ainda que para alguns possa parecer estranho, estou cada vez mais convencido de que os deveres devem igualmente ser um dos critérios a ter em conta. Se pensarmos só nos direitos, sem ter bem presentes os deveres dos quais, em certa medida, os primeiros decorrem, não me aprece que consigamos ir muito longe na promoção dos novos e urgentes estilos de vida.
E retomo o texto, destacando-o, agora, na sua interpelação às comunidades cristãs:
Consequentemente, um evangelizador não deveria ter constantemente uma cara de funeral. Recuperemos e aumentemos o fervor de espírito, “a suave e reconfortante alegria de evangelizar, mesmo quando for preciso semear com lágrimas! (…) E que o mundo do nosso tempo, que procura ora na angústia ora com esperança, possa receber a Boa Nova dos lábios, não de evangelizadores tristes e descoroçoados, impacientes ou ansiosos, mas sim de ministros do Evangelho cuja vida irradie fervor, pois foram quem recebeu primeiro em si a alegria de Cristo».
No meio da situação em que vivemos, a celebração, o anúncio e a alegria devem ocupar também um lugar de destaque.
Não porque ignoremos as dificuldades e os sofrimentos de tantas e tantas pessoas, mas, pelo contrário, porque não podemos, nem queremos, deixar de tê-las bem presentes, de modo a que nas situações em que a angústia e a esperança se entrelaçam de uma maneira tão evidente, possamos apontar novos horizontes, comprometendo-nos com a missão (dever) de comunicar vida a todos.
Foto da capa: Jeremy Bishop | Unsplash.