Um dos nomes maiores da filosofia do século XIX, o dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855) legou-nos uma obra árdua do pensamento, declinando de um modo inovador dimensões da vida humana como a ética, a esperança e o desespero, a liberdade e os seus constrangimentos (sobretudo interiores). Mas também a experiência religiosa, na matriz da Reforma, moldou a sua linguagem e a sua reflexão. Elaboradas em forma de meditações pessoais, quase como um diário, as suas meditações filosóficas e religiosas buscam o vivido, as angústias e preocupações que habitam o nosso íntimo e que são, com frequência, ocultados por mil distrações.
É neste horizonte que se inserem estes Dezoito Discursos Edificantes que temos agora o privilégio de acolher na língua portuguesa. Explica-nos o Autor no prefácio: “Que por isso se intitulou “discursos” e não sermões, porque o seu autor não tem autoridade para pregar; “discursos edificantes” e não discursos para edificação, porque o orador de modo algum pretende ser mestre” (p. 35). Meditações pessoais, portanto, cujo ponto de partida é habitualmente uma passagem ou apenas uma frase do Novo Testamento, sobretudo das Cartas Apostólicas.
Tal passagem ou frase permite ao autor navegar livremente por uma busca de um Cristianismo vivido e assumido por cada crente, indo mais além de uma mera pertença social ou difusa. Mas, sobretudo, uma experiência cristã que permita vencer o medo (tal é, de facto, a definição de fé): o medo da existência, o medo do juízo de Deus, o medo do fracasso pessoal. Por isso, a experiência cristã é uma experiência da graça, do amor primeiro de Deus.
O que é que torna uma pessoa grande, admirada pela criação, comprazível aos olhos de Deus? O que é que faz uma pessoa forte, mais forte do que o mundo inteiro; o que é que a faz fraca, mais fraca do que uma criança? O que é que torna uma pessoa firme, mais firme do que uma rocha; o que é que a torna branda, mais branda do que a cera? – É o amor! O que é mais velho do que tudo? É o amor. O que é que sobrevive a tudo? É o amor. O que é que não se pode tirar, mas que ele mesmo tudo tira? É o amor. O que é que não se pode dar, mas que ele mesmo tudo dá? É o amor. O que é que subsiste quando tudo falha? É o amor.
p. 86
A leitora ou o leitor que acolha o desafio corajoso de percorrer estas páginas, por vezes árdua de pensamento, precisará de tempo para as saborear no que elas têm de enriquecedor. Não se trata de uma leitura edificante no sentido que habitualmente lhe damos, isto é, que ilude as nossas questões e apazigua o nosso desejo. É uma leitura inquietante, onde o paradoxo que nos habita entre o temor de viver e a descoberta da graça libertadora encontra alguém que o diga, que o descreva, que o decline.
O amor permanece numa pessoa; e quando tudo para ela se torna confuso, quando os pensamentos se erguem em acusação, quando as angústias levantam a cabeça em condenação, então, o amor intimida-os, dizendo-lhes: tende simplesmente paciência, eu fico convosco e testifico convosco, e o meu testemunho há-de, enfim, derrotar a confusão.
p. 107
Obra: Dezoito discursos edificantes
Autor: Soren Kierkegaard
Edição: Relógio d’Água
Páginas: 464