Deus manifesta-se de muitas maneiras

Dia 6 de setembro de 1522: dezoito sobreviventes da expedição que circum-navegou a Terra desembarcam e dirigem-se ao santuário de Nossa Senhora para agradecer a Deus por tê-los poupado.

Três anos de navegação e encontro com as mais variadas maneiras de viver e de pensar. Estranho, sem dúvida, para os católicos foi encontrar povos que acreditavam não haver separação entre o mundo espiritual e o mundo físico, e que existem almas ou espíritos não só em seres humanos, mas também em animais e elementos naturais.

Hoje chamamos isso de animismo. Há quem o defina (sem razão) superstição e afirme que a religião apareceu pelo medo do homem primitivo diante dos fenómenos naturais. Medo, sim; mas também fascínio. O nascimento de uma criança, o desabrochar de uma planta, os frutos que saciam a fome não indicam que há uma vitalidade misteriosa que produz tudo isso? Enfim, há sempre algo ou alguém acima da realidade cotidiana.

Crescido numa família de tradição espiritual africana e convertido ao catolicismo aos 16 anos, o padre jesuíta africano Agbonkhianmeghe Orobator diz que chamá-lo de animista “é um ato de reconhecimento e de solidariedade para com a preciosa sabedoria e intuição de uma tradição religiosa grosseiramente incompreendida e deturpada”. Enfim, a natureza (e a vida) é um milagre. Albert Einstein captou isso: “Existem apenas duas maneiras de viver a sua vida: uma é como se nada fosse um milagre, a outra é como se tudo fosse um milagre”.

As crenças animistas levaram ao politeísmo, o que geralmente é classificado como paganismo. Os deuses, semelhantes aos humanos até nos defeitos e vícios, mas com poderes sobre-humanos, representam a personificação de espíritos, antepassados, demónios. Sem dogmas, verdades definidoras da religião, a participação do cidadão em assunto religiosos era nula, deixando para as autoridades o exercício do culto oficial, baseado exclusivamente no ritual. Importante era oferecer sacrifícios para obter a benevolência dos deuses.

Roma não impunha a sua religião aos povos dominados; tinha ojeriza (significa má vontade, repulsa), isso sim, do povo judeu, considerado imoral e esquisito. Os judeus, por sua vez, ansiavam pelo Messias que poria fim ao domínio romano e estabeleceria o seu próprio reino de paz e justiça. No meio judaico prosperou uma seita, os Nazarenos, afirmando que Jesus de Nazaré era o esperado Messias, o Cristo. Jesus entretanto afirmava: “O meu Reino não é deste mundo” (Jo 18,23) e pregava que o que define a essência divina não é a omnipotência, mas o amor infinito. Deus pai de todos e por isso “todos são irmãos” (Mateus, 23, 8).

Os primeiros judeus-cristãos, oriundos das camadas inferiores da sociedade, acreditavam em Jesus como o Messias e ainda seguiam as leis judaicas. Pertencia-se à comunidade pelo baptismo; o fiel participava da Celebração da Ceia (Fracção do pão: Memorial da obra salvífica de Cristo, e Eucharistia = ação de graças). Os Doze Apóstolos eram testemunhas e mensageiros originários; as funções eram designadas diakonia, serviço. Foram excluídos da sinagoga (Concílio rabínico de Jamnia), mas com Paulo a mensagem cristã alcançou uma autêntica inculturação no mundo helenístico. A pequena seita cristã desabrochou em religião mundial, inscrita na sociedade. A abertura universal permite que todos os homens, justificados pela fé, encontrem Deus através de Jesus Cristo.

Considerados traidores da religião oficial do Estado por não aderirem ao culto aos deuses e ao imperador, os cristãos foram perseguidos por cometerem um crimen laesae romanae religionis (crime de ofensa à religião romana). Até que, em 313, o Edito de Milão dos co-imperadores Constantino e Licínio concede a liberdade religiosa e, por conseguinte, os cristãos passam a ter o pleno direito de professar a fé. Constantino protege o cristianismo visando a unidade do império; os bispos tornam-se funcionários do Estado e avança a romanização do Cristianismo ocidental que adota a organização administrativa romana. Em 380, o imperador Teodósio declara o cristianismo, na sua versão ortodoxa, a única religião imperial legítima.

As perseguições não impediram a difusão do cristianismo que pregava e convidava para a solidariedade social: todos eram convidados a sentirem-se irmãos e irmãs, independentemente da raça, classe ou cultura. Enfim, como afirma Trevor Ling, o cristianismo impôs-se por uma revolução de veludo que, ao atribuir importância à consciência individual e valorizar cada indivíduo, teve, a longo prazo, uma profunda influência humanizante.


Foto da capa: Santuário da Cruz de Magalhães durante o Grande Festival ‘Sinulog’, marcando a festa do Menino Jesus em Cebu, Filipinas, 20 de janeiro de 2019. Foto: EPA / Alecs Ongcal.

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