A promoção da liberdade, a edificação da paz e a erradicação do trabalho infantil são apenas alguns dos desafios que se colocam, hoje, à missão de educar.
ESPECIAL setembro 2021 – Juan Ambrosio (Coordenação)
Formação Humana para a Liberdade
O ser humano não é a única entidade que é passível de ser instruída, isto é, de ganhar novas competências cuja origem lhe é alheia e cuja operacionalização é mecânica ou aproximadamente mecânica.
Sabe-se sem margem para dúvida que todos os seres vivos só conseguem sobreviver através da resiliência que têm e que esta é tanto mais eficiente quanto mais cada um de tais seres é capaz de ganhar instrução através do modo como vive, adaptando-se inteligentemente ao meio em que existe, meio que é constituído não sobretudo por coisas, mas por atos.

Sabe-se bem da capacidade que seres como os vírus têm de, como espécies, funcionar como se fossem uma entidade unitária capaz de instrução. Não é exatamente assim que tal ocorre, mas a casualidade de novas estirpes mais bem adaptadas à parasitação dos seus hospedeiros funciona como se fosse a espécie a ganhar nova instrução de como fazer melhor para melhor parasitar.
Como é evidente, este modo de proceder não consiste propriamente numa instrução, a menos que se queira transformar uma espécie viral ou uma sua nova estirpe em algo como uma entidade capaz de instrução, como, por exemplo, um cão.
A capacidade de receber instrução ou algo que com tal se assemelhe prova que a realidade, sobretudo a realidade biológica, é constituída fundamentalmente por inteligência, em muitas e variadas formas.
Todas estas formas, no entanto, têm como finalidade objectiva pelo menos a sobrevivência dos entes que constituem. Não há, assim, vida, sob qualquer forma, que não dependa quer da inteligência quer da capacidade de instrução ou algo de análogo a esta última.
A instrução é puramente objetiva: é por esta razão que se pode instruir uma máquina, através quer do modo como se constrói a sua realidade física, impondo mecanicamente instrução – programação – na simples matéria formalizada que a constitui (por exemplo, um relógio) quer escrevendo e reescrevendo programas informáticos já não meramente mecânicos (como os das máquinas de tecelagem programadas por cartão). Há alguns anos que se pensa que seja possível – teoricamente, é – programar máquinas de modo a que estas possam produzir as suas próprias instruções. Tal ainda não é um processo de educação, mas de simples reprodução diferencial de instruções.

Então, o que é que diferencia a educação da mera instrução?
O sabor do saber. Quer isto dizer que a educação implica sempre que o ser que recebe a instrução tenha inteligência do sentido de isso de que é instruído e que, no mesmo ato, saiba que ele próprio coincide com tal sentido, o que não sucede em qualquer dos casos abordados acima. De notar que se algum dia for possível criar uma máquina que consiga tal coincidência de si própria com o sentido da instrução, será criada a primeira real «inteligência artificial», indistinta do que é um ser humano do ponto de vista do cerne do que constitui propriamente o ato do espírito.
A educação é um ato do espírito e para o espírito. Não se limita a procurar transferir informações ou conteúdos formais quaisquer para um ser humano, como se este se tratasse de uma máquina ou de um ente simplesmente instruível, programável (que também é; os tiranos vivem desta possibilidade de programação humana, substitutiva do espírito).
A educação é o processo – ou o ensaio do processo – segundo o qual se procura que uma pessoa humana se desenvolva maximamente como pessoa, quer dizer, como entidade espiritual, de sentido. A educação serve para possibilitar e, possibilitando em ato, para transformar isso que é um ser humano em plena potência de humanidade num ser humano em plena realização de humanidade, na sua absoluta diferença antropológica, precisamente essa que faz dele uma pessoa e não apenas mais um indivíduo indiferenciado.
Deste modo, a educação é o único verdadeiro instrumento de liberdade, pois é ela que permite a cada pessoa encontrar isso que é o seu sentido próprio, no seio de um mundo que é constituído não apenas por realidades físicas e biológicas sem sentido autónomo próprio, mas também por realidades de sentido autónomo próprio e irredutível: os outros seres humanos, as outras pessoas.
Ora, para que tal possa suceder, a educação deve sempre servir o processo de construção autónoma do sentido próprio de cada ser humano. Tal não significa que esta construção seja feita de modo solipsista (não é mesmo possível que o seja, porque implicaria impossibilidade de contacto com isso que é passível de adquirir sentido na relação) ou de forma egoísta (limitadora da grandeza do sentido possível, porque limita as relações possíveis), mas que o sentido tem de ser construído na máxima abertura inteligente possível, de modo a que as possíveis relações de sentido sejam tão vastas quanto permite a grandeza própria de cada pessoa, diferente de ente para ente.

É neste ponto que se funda o sentido de que a minha liberdade termina onde começa a dos outros: se limito a liberdade dos outros pela minha ação violenta sobre eles, como pode a minha capacidade de adquirir sentido – de eu ser como sentido – engrandecer-se, pois acabei de eliminar parte da sua possibilidade? É apenas vivendo a vida como permanente atualização da possibilidade de sentido próprio, de que tudo o mais faz parte como, precisamente, possibilidade, que é possível (a repetição é propositada, pois é o que está em causa) construir-me como pessoa, quer dizer, é vivendo a vida como real processo de educação permanente que posso ser pessoa.
Se se restringir a educação a um processo – que é o comum – de instrução para seres humanos, está-se a transformar estes em realidades mecânicas ou biológicas socialmente programadas – como foi triste exemplo a «Juventude Hitleriana» –, assim matando o que há de propriamente humano nas pessoas.
Educar é mostrar e permitir que se perceba o sentido mundano e divino da beleza dos lírios do campo; instruir é passar a informação de quanto se pode ganhar com eles cortando-os e vendendo-os. A educação faz viver, abrindo o absoluto do horizonte de possível futuro; a instrução mata, reduzindo o bem e o belo de cada coisa a fórmulas mais ou menos úteis. Todavia, a instrução subsumida à educação pode ser um bom instrumento de libertação. Sozinha é apenas uma grilheta formal, um veículo de opressão e de impossibilidade de liberdade.
Foto da capa: Regresso às aulas, em Coimbra, setembro 2020. Foto PAULO NOVAIS/LUSA.
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