De Profundis, descida lenta

Deixem-me começar com esta citação de A.O. Scott & Manohla Dargis, The New York Times: “Uma meditação calma, intensa, quase esmagadoramente bela sobre a vida, a morte, a curiosidade humana e o insondável poder da natureza”. Diz quase tudo o que senti ao ver este filme tão diferente.

Estamos numa aldeia, encravada no vale de umas montanhas, na Calábria, sul pobre de Itália. O ano é o de 1961, ano em que foi inaugurado o edifício Pirelli, Milão, no norte rico de Itália, notícia que os habitantes vêem numa televisão a preto e branco. E é também o ano em que um grupo de espeleólogos vai para essa aldeia explorar e cartografar uma fenda geológica, descendo aquela que se revelará ser a terceira mais profunda da Europa. É importante o simbolismo deste contraste.

Il buco, Das profundezas, de Michelangelo Frammartino. Prémio Especial do Júri no Festival de Cinema de Veneza. Drama, M/6, FRA, ALE, ITA, 2021.

Nessas montanhas magníficas – filmadas de modo muito solene e divino, diria –, onde está situado ‘o buraco’ (é esse o título original do filme), vive um grupo de pastores, entre os quais sobressai a figura tutelar um velho marcado pela passagem dos anos, quase sempre, atentamente sentado junto ao tronco grande e rugoso de uma árvore. É de lá, como se fosse uma sentinela, que vigia tudo o que se passa. E é desse lugar que, talvez sem compreender, assiste ao grupo de espeleólogos que chega, monta o acampamento, e vai fazendo o seu trabalho de descer ao buraco.

Digamos então que a câmara se limita a acompanhar o que acontece com o(s) pastor(es) e com os espeleólogos. Por isso, é um filme de pouquíssimas palavras (ainda que com muitos sons) – não há sequer legendas, as únicas que aparecem são as da televisão, logo no início. E é, de maneira sublime, para mim, um filme de imagens. São elas que falam. Aquele jogo de luz e sombras causado pela única luz dos capacetes dos espeleólogos, primeiro na aldeia, mas sobretudo depois naquela imensa gruta é indescritível e inesquecível. Penso que pode ser visto – creio que é isso que o filme pode ser – como uma metáfora da nossa vida: esse caminhar lento e custoso, ‘entre as luzes e sombras do caminho’.

“O cinema, como escreve, João Lopes, no Diário de Notícias, nasce do milagre da luz”. Não sei se alguma vez foi tão verdade como neste filme.

Na montagem em paralelo – a vida cá em cima e a vida lá em baixo – há um momento revelador. Um dia, o tal pastor vigilante que aparece no princípio, não regressa à cabana, o burro chega sozinho e sem os ramos de lenha que costumava carregar. Alguma coisa aconteceu. Como vimos naquelas folhas de revista, acesas e atiradas para iluminar a escuridão das profundezas e que naturalmente se extinguiam, também a vida do pastor está prestes a apagar-se. Naturalmente, no fim de uma vida longa, como a chegada ao final da exploração e do mapeamento da fenda geológica. Inesquecível aquele fechar da porta e da janela, e da luz que não deixou de atravessar as fendas na madeira. Inesquecível também a imagem, aquando da chegada, dos espeleólogos – uns mais do que os outros – deitados a dormir, na sacristia da igreja, lado a lado com a imagem de Cristo jazente. Como o pastor nos últimos momentos da vida.

Das Profundezas é um filme poético, plácido e, à sua pausada e atenta maneira, aventuroso”, escreveu Eurico Barros, no Observador. Seria ‘pecado’ não ver.

Uma nota final só para dizer que, logo no fim da sessão, me lembrei do salmo e do título do livro de José Cardoso Pires, De Profundis, valsa lenta, que ‘inspirou’ o título deste texto.

Il buco, Das profundezas,
de Michelangelo Frammartino.
Prémio Especial do Júri no Festival de Cinema de Veneza.
Drama, M/6, FRA, ALE, ITA, 2021.

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