Os santos são obras-primas de Deus, pessoas extraordinárias que forçaram as portas do céu. A sua coragem não conhece limites e mergulham na vida sem descanso, à procura da Verdade.
Excerto do Livro António Secreto
Iniciamos, este mês, a apresentação de alguns excertos do livro António secreto, o romance histórico recentemente publicado em Portugal, por merecer a atenção dos nossos leitores, graças ao seu conteúdo documentado, profundo e cativante. Ao longo das próximas edições da revista iremos abordar algumas temáticas, conforme o itinerário que o romance nos propõe. Ao mesmo tempo lançamos uma campanha para adquirir o livro em conjunto com a assinatura da revista.
A mudança de nome e de vida
A cena que o texto relata, passa-se no Mosteiro de Santa Cruz, por volta do ano de 1220. Fernando e o seu mestre Raimundo estão a preparar a despedida do jovem cônego regrante da vida monacal.
Em Santa Cruz, o tilintar da sineta anunciava o encerramento do capítulo.
Ao presidir à breve reunião, D. Raimundo expôs o pedido de Fernando com tal paixão que muitos confrades foram colhidos pela emoção. Sem esperar pelo regresso de Sebastião, o mestre falou como se já tivesse recebido a aprovação do bispo. Ninguém ousou opor o seu voto ao parecer da autoridade episcopal. Contados os votos, o pedido foi acolhido.
(…) Agora sabia que tinha perdido Fernando para sempre e esta certeza apagava o que ele habitualmente definia como a energia vital de todo o homem: o projeto, o desígnio, a ideia, o sonho do homem. E Fernando fazia parte do seu sonho. Com efeito, há muito tempo que contava confiar ao seu querido aluno os esforços de toda a sua vida: estudos, pesquisas, elaborações; dezenas e dezenas de catálogos, de listas, de recolhas; as invenções, os escritos, as anotações e centenas de fórmulas; todos os livros, manuais e formulários que tinha colecionado durante uma vida inteira de trabalho, incluindo os instrumentos para destilação, alambiques, prensas, caldeiras e almofarizes. D. Raimundo tinha decidido confiar tudo o que constituía a sua herança a Fernando, o melhor aluno que alguma vez tinha tido, uma promessa para o saber e, para ele, a promessa, aliás, a certeza de ser alguém que perpetuaria a sua obra.
Invadiu-o uma sensação de vazio, ao imaginar a vacuidade da sua existência.
No silêncio contemplativo, Fernando vai assentando o caminho da sua vida…
(…) Naquele canto secreto, no lugar mais remoto e inacessível do mosteiro, na companhia de alguns ratos de esgoto esfomeados ou de morcegos que, ao voarem, lhe afloravam a cabeça, Fernando afiava o bico da pena de ganso e, tenazmente, manuscrevia, um após outro, os documentos a entregar a D. Raimundo, para sua salvação.
Os hipócritas e os falsos religiosos são astros errantes, causa de naufrágio para os outros e, por isso, serão tragados pela tempestade e pela tormenta da morte eterna.
Os falsos religiosos, à semelhança dos armazenistas, vendem produtos sofisticados na praça pública: sob o hábito da ordem e sob a sombra de um falso nome, anseiam por ser louvados; perante as pessoas querem parecer santos, mas, na realidade, não querem sê-lo…
A religião, que devia conservar todo o género de virtudes e o perfume dos bons costumes, é destruída e torna-se uma loja de rua. Joel lamenta-se disso, dizendo: “Os celeiros estão arruinados”, isto é, os claustros dos que vivem segundo uma regra; “os armazéns”, quer dizer, as abadias dos monges, “estão vazios, pois o trigo secou”. Por falta de caridade, é destruído o sagrado depósito de toda a religião…
Mal o cansaço se apoderava dele, mergulhava a cabeça no balde de água fresca e repetia a ordem recebida do mestre: escrever tudo o que tinha visto e ouvido, escrever sem descanso, a fim de assegurar a sua integridade.
Hoje não se realizam mercados, nem se fazem reuniões, civis ou eclesiásticas, em que não se encontrem monges e religiosos. Compram e revendem, edificam e destroem, arredondam o que era quadrado, isto é, desmontam e tornam a montar tudo.
Nas causas, convocam as partes, litigam perante os juízes, contratam juristas e advogados, arranjam testemunhas prontas a jurar em conjunto com eles por coisas efémeras, frívolas e vãs. Aqueles que engolem e desperdiçam os bens dos pobres serão, eles próprios, presa do diabo.
Fernando olhou para o coto da vela e, com medo de que se apagasse, acendeu uma nova. Quando a luz do dia deixou de iluminar a janela, Fernando recitou as Completas e restaurou um pouco as forças amolecendo pão duro num pouco de vinho acrescentado com água. Na quietude do silêncio, escutou os barulhos da noite. Ao longe, um cão gania, lamentava-se, chorava. Pensou na pequena aldeia dos leprosos, nas crianças suas amigas. Quem sabe se teriam comido?
Foto da capa: Apresentação do livro António Secreto, em Coimbra, na sacristia da Igreja de Santo António dos Olivais, onde se encontra a tela de Pasquale Parente que representa a vestição de Santo António. Foto Carlos Neves, Correio de Coimbra.