Muitas coisas devem reajustar o próprio rumo, mas antes de tudo é a humanidade que precisa de mudar. Falta a consciência duma origem comum, duma recíproca pertença e dum futuro partilhado por todos. Esta consciência basilar permitiria o desenvolvimento de novas convicções, atitudes e estilos de vida. Surge, assim, um grande desafio cultural, espiritual e educativo que implicará longos processos de regeneração.
Laudato si’ 202
Dito por outras palavras: face aos tremendos desafios com que está confrontado o futuro do Planeta e, de modo particular, a sobrevivência da própria Humanidade, facilmente caímos na conta de que é a própria Humanidade que tem de mudar radicalmente no seu relacionamento com esta casa comum.
Não se muda apenas por decreto
Para alcançar a mudança que se impõe, precisamos de encetar uma verdadeira transformação interior, com o que isso significa de mudança profunda do nosso olhar e da compreensão que temos do nosso lugar no mundo, da nossa relação com os demais seres vivos, com as outras pessoas e outros povos.
Concretizando com alguns exemplos: não podemos continuar a considerar-nos como dominadores e senhores da natureza, predadores de recursos não renováveis, desatentos das montanhas de lixo que produzimos, irresponsáveis face aos danos ambientais que provocamos com um consumismo desenfreado, tolerantes com um crescimento económico a qualquer custo, conformados com as grandes desigualdades e a pobreza extrema, etc.
Precisamos de encetar um processo de conversão interior que nos mobilize para o cuidado da nossa casa comum
A mudança interior de concepção de vida e do lugar de cada pessoa na casa comum será o primeiro degrau de uma profunda conversão ecológica que se traduza em alteração de atitudes, comportamentos, estilos de vida, modos de produção e organização da sociedade que estejam em consonância com uma ecologia integral.
Não haverá, porém, conversão ecológica sem uma mística que a sustente. Por conseguinte precisamos de fazer despertar e consolidar nas nossas comunidades eclesiais, mas também nas nossas famílias, nos nossos locais de trabalho ou de convívio social, uma mística de cuidado da nossa casa comum.
Em primeiro lugar, há que reabilitar a palavra mística e tomá-la como parte da realidade humana e não como algo patológico equivalente a fuga da realidade; em segundo lugar, há que reconhecer que o ser humano não é apenas movido pela inteligência e pela razão, nem está necessariamente acorrentado ao desejo de sobrevivência e ao seu exclusivo interesse, egoísta e míope. O ser humano é também dotado de sentimentos e de consciência emocional e reconhecemos que estes induzem o seu olhar acerca da realidade, influenciam os seus desejos, as suas atitudes e os seus comportamentos, orientam as suas escolhas e o seu agir.
Na fé cristã e na tradição da Igreja encontramos um caminho seguro para uma mística ecológica
Na perspectiva cristã, a mística é abertura ao mistério e à transcendência de Deus, que vai sendo descoberta através da contemplação da sua obra, a Criação, a revelação da sua Palavra, o testemunho da vida, da morte e ressurreição de Jesus, o reconhecimento do dom do Espírito agindo no espaço e no tempo.
A mística cristã conduz-nos a um conhecimento intuitivo e afetivo em relação com tudo o que se passa no mundo. Como diz o Papa Francisco a propósito da ecologia: Nada deste mundo nos é indiferente (Laudato si’, 3 e seguintes).
Também somos Terra
A mística cristã leva-nos a sair da autorreferencialidade e coloca-nos na perspectiva das vítimas, as pessoas e todos os demais seres vivos, o planeta em que habitamos, as gerações presentes e as futuras. Assumimos, interiormente, ser parte de um todo. Deste modo, podemos reconhecer interiormente: Também somos Terra! E assumir como seu o sofrimento infligido ao planeta e aos seres que nele habitam.
Talvez que esta dimensão da nossa fé cristã não esteja a ser devidamente valorizada e por isso há que introduzi-la na vida eclesial, através da catequese, das homilias e demais meios de formação e de alimento espiritual dos fiéis.
As pessoas místicas são criativas
A mística cristã não consente em atitudes de passividade e conformismo; ao invés, gera liberdade de espírito para pensar e fomenta a crítica das instituições e dos poderes instituídos ou fáticos, denunciando os seus desmandos e procurando viabilizar caminhos de soluções alternativas, no sentido da justiça e da ecologia integral.

Ao contrário daquilo que por vezes se julga, as pessoas místicas são criativas, tanto na denúncia do que está mal como na imaginação de novos rumos portadores de futuro. Não se deixam seduzir pelo consumismo, pelas modas e o inerente desperdício de recursos ou pelo mito do crescimento económico ilimitado.
Privilegiam o bom relacionamento interpessoal, o bom uso do tempo, a simplicidade no seu estilo de vida, a partilha equitativa dos bens, a coesão social e a convivência pacífica entre os povos.
Uma conversão ecológica que requer uma mística de raiz cristã
As pessoas místicas têm liberdade para deixar que germinem novos paradigmas de relacionamento entre pessoas, comunidades e povos. Têm o sentido de uma paciente urgência (passe o aparente paradoxo!) Têm um coração atento, solidário e compassivo.
A mística alimenta-se com o conhecimento e a contemplação, o que supõe tempos de silêncio e de trabalho de unificação interior que levam à superação de um agir baseado num mero dever moral e enraízam o agir na contemplação e no desejo profundo de respeito pela Criação, assumida como dom de Deus.
Retomo a ideia inicial de que para fazer face à crise ecológica precisamos de encetar um caminho pessoal e comunitário de conversão ecológica que requer uma mística.

Os movimentos ecologistas aparecem, muitas vezes, mais como reivindicações ou manifestações contra… do que como uma opção pessoal e comunitária de um estilo de vida em sintonia e respeito com a natureza.
Ao defendermos o reconhecimento da importância da conversão ecológica, alicerçada na mística de raiz cristã como caminho de uma mudança antropológica capaz de responder ao cuidado com a casa comum, não estamos sozinhos.
Ainda recentemente, se escrevia na Mensagem final do 38º Congresso de Teologia, Madrid, 9 Setembro 2018:
(…) tomamos consciência da necessidade e urgência de uma mística de olhos abertos, coração solidário e amor politicamente eficaz, de uma mística que leve a escutar o grito da Terra, o clamor de milhões de pessoas famintas de pão e de direitos humanos e lutar por outro mundo possível.
Concluo evocando o testemunho de Jesus, o carpinteiro de Nazaré, pequena cidade sem nome e sem relevo na história dos povos que, no seu tempo, a habitavam. Percebeu cedo que teria de viver da sua relação com o Pai e focado na sua missão de O dar a conhecer. Foi fiel até ao fim no anúncio de uma boa novidade: Deus é Amor. Como refere a encíclica Laudato si’:
Jesus lembrou-nos que temos Deus como nosso Pai comum e que isto nos torna irmãos.
Laudato si’, 228
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