Sob o sol, há falsidade e vaidade, intrigas dos poderosos contra os miseráveis, cruéis sentenças contra os pobres que derramam lágrimas inocentes e não têm ninguém que os apoie.
Dos Sermões de Santo António, Excerto do Livro António Secreto
Os avarentos e os usurários devoram os pobres e apoderam-se do património dos outros. Aqueles que saqueiam e engolem os bens dos pobres serão eles próprios presa do diabo.
Franqueza e firmeza
Na sua pregação, Santo António manifestava duas qualidades evidentes que caraterizavam a sua pessoa: a liberdade de linguagem que não calava a verdade por medo e a luta contra aqueles que se opunham à verdade e pisavam a justiça. Franqueza e firmeza permeiam o seu discurso e o seu testemunho de vida. Em primeiro lugar, António procura a reconciliação e a paz entre as pessoas e os grupos sociais que compõem a sociedade do seu tempo. Mas são particularmente os pobres e os encarcerados por causa das dívidas contraídas que despertam a sua atenção e a sua caridade. É sobretudo contra a usura e os usurários que António tem palavras de fogo.
Também no seu ensino e na formação dos futuros frades e pregadores, António transmite a boa nova do evangelho com paixão, brilho e lucidez.
— Meus rapazes – disse António em tom apaixonado – não se prendam às regras fixadas no papel. As regras podem ser mudadas! E as leis também! Às vezes têm de ser mudadas − sublinhou – se se quiser um mundo mais justo. Coloquem sempre perante vós estas perguntas: Porquê? Por que é que na nossa cidade há tantos casos desesperados?
Por que é que todos os dias algum desgraçado renuncia à vida, apertado pelas garras das dívidas? Por que é que os usurários enriquecem, compram palácios, se sentam em banquetes e nos Conselhos, enquanto muitos dos seus devedores, que até ontem os enriqueciam, padecem as penas do inferno?
Embora Lucas fosse considerado o seu braço direito, quando escutava as propostas de António, nunca deixava de se surpreender e assim também no olhar dos rapazes se lia o espanto perante aquelas palavras, que na sua mente já abriam novos horizontes.
— Não é preciso ter sempre a solução pronta, pelo contrário! Porém, é nosso dever imaginar que, se houvesse outras leis, talvez aqueles homens se tivessem salvado. Trata-se do valor da vida, estão a perceber? Por vezes os governantes fazem leis que estão longe da realidade. Por isso, até por esta razão, procurar e sugerir outras soluções é uma tarefa que nos diz respeito. Portanto, rezemos, estudemos, reflitamos e voltemos a rezar, a fim de que o Senhor nos indique o caminho justo a seguir.
Todos voltaram para o seu lugar e retomaram o trabalho, repletos de uma nova ambição.
António continuava a fixar a ampulheta. Aquele pequeno remoinho sugeria algo de infernal e diabólico.
Quanto mais se prolongava o tempo a um devedor insolvente, mais o banco de crédito ganhava. O tempo, por si só, produzia desespero e riqueza. Como era possível?
Como ele próprio ensinava, procurou a resposta no Livro dos livros. Na sua própria memória encontrou as páginas.
A Bíblia afirmava continuamente a proibição do empréstimo com juros. Porquê?
O livro do Êxodo talvez fosse o testemunho mais antigo, mas também no Levítico e no Deuteronómio havia as mesmas proibições e idênticas recomendações. E também as havia em Habacuc e em Ezequiel. Porque é que o Livro dos livros se detinha tanto nesta questão? – interrogava-se António, obstinadamente. Levou as mãos à testa e, concentrando-se, procurou recordar cada palavra.
A usura é a morte
(…)
— Desculpa, Lucas, podes repetir-me a frase que ontem me disseste?
— “A usura nunca para de pecar. Quando o seu patrão dorme, ela não dorme, mas aumenta e cresce sem descanso”.
De repente, António dirigiu-se ao seu assistente:
— Alexandre, escreve e lembra-te de que deve ser integrada no sermão do Domingo da Sexagésima.
O jovem apressou-se a molhar a caneta no tinteiro e fez sinal de que estava pronto.
António começou a ditar:
Há três espécies de usurários. Aqueles que praticam a usura em privado. Estes são os répteis que rastejam sorrateiramente e são inúmeros. Outros praticam usura em público, para parecerem misericordiosos. Outros ainda são os usurários ímpios, que praticam a usura na frente de todos, na praça. Estes são os animais grandes, os mais cruéis, que serão presa do demónio e terão a morte eterna, a não ser que restituam os bens roubados e façam uma penitência adequada.
— Obrigado, Alexandre. É suficiente – concluiu António.
Depois pegou num pergaminho, onde uns dias antes tinha apontado algumas reflexões e releu-as.
Confrontado com dívidas insolúveis, o homem perde a sua liberdade, volta a ser escravo e perde-se a redenção que Deus realizou.
Deus quer que o homem seja livre. Sacrificou o seu filho unigénito Jesus para libertar o homem da escravidão do pecado.
Mas se o homem se tornar escravo do dinheiro, então a obra de Deus é anulada. Deus libertou o homem, mas o homem volta a atirá-lo para a escravidão, prendendo-o às cadeias do dinheiro, anulando deste modo a obra de Deus.
Foto da capa: Os dois cobradores de impostos ou os dois usurários. Óleo sobre tela de Quinten Metsys (1456-1530), Museu do Liechtenstein, Commons Wikimedia.