Contextualização histórica da viagem de Fernão de Magalhães

Aos primeiros alvores do dia 21 de Setembro de 1519, aproveitando a brisa que soprava de terra, com a Concepcion e a Santiago à frente, o navio-almirante Trinidad ao centro, seguidos pela San António e pela Victoria, a armada faz-se ao mar com rumo Sudoeste. Os pavilhões flutuam acariciados pela brisa e em terra ouvem-se salvas de canhão desejando boa viagem. No castelo de popa da Trinidad, Fernão de Magalhães endireita-se e caminha de um bordo ao outro para contemplar a sua esquadra.

“Fernando de Magalhães, que superou os famosos estreitos do Sul”. Retrato anónimo de Fernão de Magalhães, sec. XVI ou XVII.
“Fernando de Magalhães, que superou os famosos estreitos do Sul”. Retrato anónimo de Fernão de Magalhães, sec. XVI ou XVII.

Começa assim a odisseia de Fernão de Magalhães e dos que o acompanharam numa viagem repleta de provações e de dramas que duraria cerca de três anos.

Pelo caminho quase tudo aconteceu: a fome, o escorbuto, a amotinação, os combates, as vagas alterosas, o vento desesperante e até a falta dele e, acima de tudo, a descoberta do estreito que liga o Atlântico Sul ao Pacífico.

O objetivo de Magalhães não era realizar a circum-navegação da Terra, mas alcançar as Molucas e mostrar que poderiam estar no hemisfério castelhano decorrente do Tratado de Tordesilhas assinado em 1494. Ficou acordado neste tratado que todo o mundo desconhecido a leste de uma linha imaginária traçada a 370 léguas a oeste das Ilhas de Cabo Verde pertenceria a Portugal. Todo o espaço a Oeste dessa linha pertenceria a Espanha. No que diz respeito aos Oceanos Atlântico e Índico, não havia problema; mas e o outro lado do mundo? Magalhães acreditava que as Molucas estavam no hemisfério castelhano e queria prová-lo com a sua viagem. Carlos V gostou do que ouviu e resolveu apoiar a expedição, como uma empresa da coroa castelhana.

De facto, cerca de três décadas depois da assinatura do Tratado de Tordesilhas, os portugueses tinham conquistado Malaca e alcançado as Molucas. Colocava-se, portanto, o problema de, à semelhança do que fora feito no Atlântico, saber e confirmar onde passava o semi-meridiano oriental de Tordesilhas para delimitar no Extremo Oriente as áreas pertencentes a cada país.

Quando em 1522, a nau Victoria, a única sobrevivente, chegava a S. Lucar de Barrameda no Guadiana, com um carregamento de cravo, noz-moscada e sândalo o novo soberano português, D. João III, apresentou os seus protestos a Carlos V. Em resposta Carlos V invocou o facto de que as ilhas onde tinham estado os navios espanhóis, que incluíam as Molucas, não podiam ser reclamadas pelos portugueses, porque, de acordo com o Tratado de Tordesilhas, estariam no hemisfério castelhano.

A questão não era fácil de resolver uma vez que ainda não era possível nessa altura determinar de forma rigorosa os 180º de longitude terrestre. Esta coordenada apenas se podia estimar, em função do andamento dos navios, ajustando (e ajustando-se) os dados tradicionais dos cosmógrafos antigos. Assim, era tecnicamente impossível na proximidade dos limites, quando dois ou três graus podiam fazer a diferença determinar com rigor a longitude. Desta forma, restava, com maior ou menor fundamentação jurídica, a argumentação política.

Planisfério de Cantino, completado, em 1502, por um cartógrafo português desconhecido, https://commons.wikimedia.org/.
Planisfério de Cantino, completado, em 1502, por um cartógrafo português desconhecido, https://commons.wikimedia.org/.

Se olharmos para o planisfério português anónimo de 1502 (dito Cantino), tomando como escala da medida de um grau equatorial a distância entre os trópicos e o equador, veremos que, mesmo com as dificuldades referidas, está praticamente certa a largura do continente africano e a distância à Índia.

Imaginando que as viagens sequentes, até Malaca, Banda e Molucas, deram uma noção (mesmo que vaga) do espaço percorrido, é impossível não pensar que os próprios portugueses foram tomando consciência do problema diplomático que vinha a caminho, quando os espanhóis percebessem até onde estavam a navegar os navios nacionais.

Em boa razão, a disputa que estava latente desde Tordesilhas, desencadear-se-ia mais dia ou menos dia, e foi nessa base que Magalhães apresentou o seu projeto a Carlos V, que não hesitou em aceitá-lo.

Por outro lado, a decisão de fazer a viagem pelo Pacífico e não pelo Índico, ficou a dever-se ao facto de, nessa altura, os portugueses dominarem os pontos estratégicos das rotas de navegação para a Índia quer no Atlântico, quer no Índico, pelo que seria demasiado arriscado e mesmo temerário empreender uma empresa desta natureza por essa rota. A rota seguida por Fernão de Magalhães pode ser estabelecida por meio dos vários relatos daquele tempo.

A sua missão não era localizar as Ilhas das Especiarias, pois isto já tinha sido feito pelos portugueses, em 1512. A missão a que Fernão de Magalhães se propunha tinha três objetivos principais: achar uma passagem que ligasse o Atlântico ao Pacífico e estabelecer, neste Oceano, uma rota marítima até as Molucas; provar que as Molucas estavam situadas no domínio espanhol; estabelecer uma rota favorável de volta a Espanha sem cruzar o Oceano Indico, que estava sob domínio português.

Na verdade, Magalhães descobriu uma rota satisfatória para as Ilhas das Especiarias e encontrou a passagem para o Pacífico, mas foi morto numa das ilhas do arquipélago mais tarde conhecido por Filipinas e os seus sucessores não lograram estabelecer uma rota de retorno através do Pacífico.

No entanto, o facto que se tornou mais relevante acabou por ser aquele que não estava previsto de início, ou seja, a circum-navegação efetuada por um dos seus navios. De facto, a Victoria capitaneada por Sebastian Elcano conseguiria chegar a S. Lucar de Barrameda ao fim de três anos navegando sempre para Oeste, após uma viagem dramática pelo Índico e pelo Atlântico. É devido a este acontecimento, a que o nome de Fernão de Magalhães está indelevelmente associado, que se deve a sua inscrição na história das grandes viagens marítimas, direi mesmo na história da humanidade.

Bibliografia

  • ALBUQUERQUE, Luís, O Tratado de Tordesilhas e dificuldades técnicas da sua aplicação rigorosa, sep. Revista da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1973.
  • BARRAULT, Jean-Michel, Fernão de Magalhães a terra é redonda, Terramar, Lisboa, 1998.
  • CATTAN, Marguerite, “Fernando de Magallanes: la creación del mito del héroe”, Hipogrifo, (issn: 2328-1308), 6.1, 2018.
  • DAVIES, Arthur, A navegação de Fernão de Magalhães, Universidade de Exeter, UK.
  • FRADE, Florbela, A presença portuguesa nas Ilhas de Maluco: 1511-1605, Lisboa, 1999.
  • MATOS, Jorge Semedo de, A Junta de Badajoz-Elvas, Instituto Camões, Navegações Portuguesas.
  • MOTA, A. Teixeira da, “A viagem de Fernão de Magalhães e a questão das Molucas”, Actas do II Colóquio Luso-Espanhol de História Ultramarina, ed. org. por […], Lisboa, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1975.

Foto da capa: Detalhe do mapa de Ortelius – Caravela Vitória (a única que terminou a viagem). “O primeiro a dar a volta ao mundo, Magalhães que abriu um novo estreito. Caravela justamente chamada Vitória, preço da glória pelo combate com o mar”.

Related Images:

Discover more from Santo António, de Coimbra para o mundo

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading