Na vila de Serpa, em Portugal, vivia uma mulher de nome Sara, singularmente devota de São Francisco e Santo António.
Seu marido, dissoluto e mau, fazia vida com mancebas, desprezando a esposa, a quem, ainda por cima, feria muitas vezes e de muitas maneiras atormentava. E a tal ponto as coisas chegaram, que Sara, ralada de desgostos e desesperos, resolveu acabar com a vida, enforcando-se. Assim por uma vez se veria livre de tantos maus tratos, quantos o marido lhe fazia sofrer.
E uma noite, andava ausente o marido e todos em casa já dormiam, pendurou a corda em trave do seu quarto, fez o laço e metia já nele o pescoço quando com grande clamor chamaram à porta da casa.
Sara, numa pressa, escondeu a corda e foi saber quem chamava. E encontrou-se com dois Frades Menores que humildosamente lhe pediram agasalho para aquela noite, por amor de Deus.
No sobressalto em que ficou por tão inesperadas visitas, perguntou quem eram e donde vinham. E responderam os frades:
– Somos dois Frades Menores. Um de nós chama-se Frei Francisco e o outro Frei António, e vimos de muito longe.
– Então entrai – lhes disse ela – por amor de São Francisco e de Santo António de quem sempre fui devota.
E pôs-lhe a mesa para que comessem. E com tão santas palavras foram eles entretendo a refeição, que a mulher começou de se sentir mudada. E em reveria de tão santos hóspedes, resolveu não se enforcar aquela noite, como antes planeara por instigação do demónio.
Recolheram-se os frades nos aposentos que lhes destinou, e a mulher voltou para o seu quarto.
Precisamente naquela hora os dois frades apareceram em sonhos ao marido de Sara. Começaram de estranhar-lhe suas torpezas e vícios e vieram a dizer:
– Nós somos São Francisco e Santo António e vimos a ti, mandados por Deus, com este aviso: se não deixas a má vida em que andas com mancebas e de ora avante não tratas com amor tua mulher que por nós tem grande devoção, ao fim de três dias morrerás e cairás no fogo do inferno. Tua mulher vive em desespero com os maus tratos e desgostos que lhe dás, e esta mesma noite houvera-se enforcado se não lhe acudíramos indo hospedar-nos em tua casa. Vai, pois, ter com ela e para sinal de que falamos verdade, pergunta-lhe pela corda com que se quis enforcar.
O homem, ao acordar, ficou passado de medo e houve contrição de seus pecados. E, manhãzinha, logo recolheu a casa.
Já então a mulher se levantara e andava pasmada sem saber o que pensar. Os frades tinham desaparecido como por encanto. Aberta a porta dos aposentos onde os deixara e, dentro, a cama composta como se ninguém nela dormira. Não podia compreender como tivessem saído, pois todas as portas estavam trancadas.
Nisto chega o marido que benignamente a saudou. E, sem mais, desfecha logo a pergunta:
– Ó mulher, onde tens a corda com que esta noite te quiseste enforcar?
E ela, assombrada, nem sabia que responder.
– Sim – continuou o marido a explicar-se – sim, que eu bem sei a graça que a nós ambos nos fizeram São Francisco e Santo António a quem esta noite deste pousada, pois nos livraram da morte do corpo e da perdição da alma.
Então confessou ela a verdade. E também de sua parte o marido lhe descobriu a visão que tivera e humildemente lhe pediu perdão.
E ambos viveram ainda largos anos em muita caridade e mútuo amor, entregues à prática da virtude. E a Deus e a Santo António e São Francisco davam graças pelos favores que haviam recebido.

José António Correia Pereira (Coord.), Fontes Franciscanas III, Santo António de Lisboa, Legendas – Sermões, Editorial Franciscana, Braga, 2017, p. 370-372.
Foto: Pormenor de “O Milagre de Santo António”, de Francisco José de Goya ( 1746-1828), cúpula da Capela de Santo António, em Madrid.
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