A visão que muitas pessoas têm dos cientistas do passado é a do génio solitário. Por isso representam os cientistas como estudiosos envoltos em livros, em experiências e a escrever. Mas o desconhecido Ludwik Fleck propôs uma visão para o cientista muito diferente, pouco conhecida e mais próxima da realidade. Uma visão assente no cientista como membro de uma comunidade de pensamento colectivo.
Em 2016, a prestigiada Physcial Review Letters publicou um artigo com o trabalho seminal sobre ondas gravitacionais previstas por Einstein que, finalmente, foram observadas experimentalmente. O artigo tem um pouco mais do que 1000 autores. Inédito. Mas, para Fleck que reuniu as suas ideias no livro (não traduzido) Génese e Desenvolvimento de um Facto Científico, o valor do significado e verdade de uma descoberta está na comunidade daqueles que mantêm uma interação intelectual assente no passado intelectual que partilham e serviu de base na sua formação.
Só o acumular de conhecimento é que pode sustentar qualquer descoberta. Por isso, diz:
Apesar do pensamento colectivo consistir de indivíduos, não é simplesmente o agregado da sua soma. O indivíduo dentro do colectivo nunca, ou raramente, está consciente do estilo de pensamento prevalecente que exerce quase sempre uma força compulsiva absoluta sobre o seu pensamento (…).
Isto é, o artigo de 1000 autores demonstra como a originalidade em ciência tem origem na comunidade.
Do mesmo modo que no Evangelho está escrito “onde dois ou mais estiverem reunidos no meu nome, eu estarei no meio deles” (Mt 18, 20), também o pensamento colectivo existe quando dois ou mais cientistas trocam ideias entre si.
A teoria do conhecimento de Fleck assenta no pensamento gerado pela comunidade de cientistas, de tal forma que
o que pensa realmente dentro de uma pessoa não é o próprio indivíduo mas a sua comunidade social. A fonte do seu pensamento não está em si próprio mas encontramo-la no seu ambiente social e na própria atmosfera social que ele “respira”.
Uma cultura de comunhão
Foi por esse motivo que um dia questionei que diferente metáfora teria usado Darwin na Origem das Espécies se tivesse vivido numa comunidade onde a cultura dominante fosse uma cultura de comunhão.
Numa cultura de comunhão, existimos por serem os relacionamentos a dar sentido à nossa existência. Por isso, em vez de lutar para existir, a metáfora poderia ser relacionar-se para existir. Depois, numa cultura da revolução industrial, o mundo parece desenvolver-se por ação das máquinas e daí a metáfora: maquinaria da vida.
Mas a capacidade de comunicarmos hoje em rede mostra como numa cultura de comunhão, provavelmente, a metáfora mais indicada seria a da rede da vida (web of life), onde não chega afirmar a sobrevivência dos mais aptos, mas antes a sobrevivência dos comunicadores mais aptos.
Por fim, a metáfora da seleção natural tem origem na observada influencia que os agricultores tinham no resultado evolutivo final. Por isso, numa cultura orientada para a comunhão de experiências, ideias, etc., observando a natureza, parece-me que Darwin teria seguido a linha do russo Peter Kropotkin, a de uma “ajuda mútua”, levando-o à metáfora da comunhão natural. E se uma cultura da comunhão demonstra como os cientistas desenvolvem melhor ciência quando o fazem juntos, a ideia que têm do colectivo religioso parece ser oposta.
Quando a comunidade de pessoas não cientistas dá retorno das ideias que os cientistas partilham, e que, na maioria das vezes, não se percebem muito bem, a experiência mostra como isso ajuda a comunidade científica a melhorar o seu pensamento e o modo como o expressa.
Mas a ideia que as pessoas têm do pensamento colectivo religioso é a de que os teólogos e a hierarquia não aceitam o retorno que pode dar quem está de fora, procurando sempre dominar, ditatorialmente, as massas e o modo como essas acreditam.
A sinodalidade desafia esta ideia
No processo sinodal são acolhidas as diferenças de opinião sobre o modus operandi de vários aspectos da vida eclesial. E o confronto de estilos de pensamento diferentes que leva a grandes transformação na ciência, levará, também, a grandes transformações do modo de pensar eclesial de todos os cristãos. Segundo Fleck, essas transformações ocorrem durante períodos de confusão social generalizada. Períodos como o que vivemos? Estou curioso para ver que transformações se avizinham.
Para Ler Mais
- Fleck, Ludwik. Genesis and development of a scientific fact. University of Chicago Press, 2012.
- Panão, Miguel Oliveira. “Rethinking darwin in Light of a Culture of Communion.” Revista Portuguesa de Filosofia (2010): 619-633.