Este filme é muito mais que um filme: pelo modo como foi construído e realizado, e por tudo o que congregou à sua volta, ajudando-nos a ver uma situação que é actual e premente – os índios ameaçados no Brasil. De facto, para além do filme, há, em Guimarães, quatro exposições e uma mostra de cinema dedicadas ao pensamento ameríndio. Tudo com o objectivo de nos levar a olhar e a ouvir os índios.
No entanto, não se trata de um documentário sobre os índios krahô, mas de uma ficção com os índios krahô, partindo da sua cultura e do seu dia-a-dia, na Aldeia de Pedra Branca, Estado de Tocantins, Norte do Brasil.
No centro do filme está um jovem índio que não quer ser o novo Xamã da aldeia, porque isso lhe alteraria os planos que tem para a sua vida. É casado, tem um filho, e vive com uma grande inquietação: o seu pai já morreu, mas ainda falta fazer a festa que marca o fim do luto, que permitirá ao espírito do seu pai ir para a aldeia dos mortos e ficar em paz a ‘aldeia dos vivos’. E assim a vida seguirá com toda a normalidade ao ritmo das estações, das festas e das colheitas.
Os krahô não prestam culto aos mortos, despedem-se deles, da sua lembrança e saudade, e cada um segue ‘a sua vida’. Que bem nos faria parar um pouco a contemplar esta sabedoria ancestral, a nós que tantas vezes ‘carregamos’ os que morreram como fantasmas, e andamos como loucos a correr atrás do tempo e das coisas.
“Porventura não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que o vestido? Olhai as aves do céu… Olhai como crescem os lírios do campo… Não vos preocupeis, portanto, com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã já terá as suas preocupações. Basta a cada dia o seu problema”.
O filme que acompanha Henrique Ihjãc Krahô, desde aquele momento inicial em que ele vai até à cascata para comunicar com o espírito do seu pai defunto, mostra principalmente a sua ‘fuga’ da aldeia para escapar ao chamamento a ser Xamã, refugiando-se num centro de apoio aos índios, situado na cidade mais próxima. Ele quer ficar lá mais tempo, mas não lhe é permitido. A própria esposa vai lá tentar convencê-lo a regressar. Henrique acaba por voltar sozinho e a pé para fazer a festa que falta fazer, para viver a vida que é preciso viver. E para aceitar ser Xamã?
O que é interessante neste filme que quase parece um documentário é ver como, apesar da contaminação por parte da ‘sociedade branca’, presente de várias maneiras (vernizes, flippers, rádio), a cultura índia luta para se manter neste tempo tão ameaçador, e nos dá um testemunho daquilo que o papa Francisco chama a Ecologia integral. “Estando um em desequilíbrio, toda a comunidade está, e esse é o princípio da ecologia. Daí que o desequilíbrio que Ihjãc sente por não conseguir fechar o luto pelo pai seja um problema que toda a comunidade se junta para ultrapassar” (Ípsilon, 8 de Março. Este suplemento do Público trouxe um belo dossier a propósito do filme, de como foi feito, e do que ele significa).
E termino com palavras dos realizadores, Renée e João Salaviza, o casal de cineastas que viveu em Aldeia Branca para fazer o filme: “É impossível não sentir uma enorme simpatia por um povo que, hoje, em 2019, num mundo que sabemos como está, não contribuiu nem para a pobreza, nem para a fome, nem para a miséria, nem para a destruição do planeta. Isto tem muito a ver com a construção da identidade e, se calhar, a ocidental precisa da anulação do outro. Vemos isso com os refugiados, os negros, os imigrantes. Enquanto a identidade dos povos ameríndios, pelo contrário, precisa de se alimentar do outro” (Ípsilon).

Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, de João Salaviza e Renée Nader Messora, Drama, M/12, Brasil/Portugal, 2018. Prémio especial do júri no Festival de Cinema de Cannes de 2019
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