CHAVELA – Cantar como quem morre

Como alguém escreveu, “Chavela Vargas é, de facto, um caso de fascínio. Humano e artístico.” E a mim foi um amigo que me ‘obrigou’ a reparar naquela voz, naquela maneira única de cantar, apesar de já a ter ouvido, nalgum dos filmes de Pedro Almodóvar. Não podia deixar de ir ver.

Mais do que de um filme, estou a falar de um documentário sobre Chavela Vargas, ‘a voz áspera da ternura’. Imperdível, ouso dizer. Realizado por Catherine Gund e Daresha Kyi, em 2017, mas começado muito tempo antes, em 1992, por altura do seu regresso aos palcos. Já lá vamos. Diz Catherine Gund, numa entrevista ao Diário de Notícias:

Quando conheci Chavela Vargas, e filmei a nossa interação, ela tinha 72 anos e toda uma vida de canto, tendo sofrido com a bebida durante muito tempo. Tornou-se uma espécie de reclusa. Filmá-la naquele momento significou realmente preservar algo da sua memória para a posteridade. Eu estava convencida de que a carreira dela estava completa.

Chavela Vargas, considerada uma das maiores figuras da canção mexicana do século XX, nasceu, na verdade, na Costa Rica, a 17 de Abril de 1919. Rejeitada e incompreendida pela própria família, voou para o México, à procura do seu lugar, da sua voz, da sua liberdade. Durante anos foi cantora de rua e de bares, tornando-se profissional já durante a década de 1950, pela mão de José Alfredo Jiménez, um dos maiores autores da chamada música “ranchera”, habitualmente interpretada por homens, mas que encontrou nesta mulher de excessos a sua voz mais autêntica.

Amiga de Frida Kahlo, Diego Rivera, García Lorca e tantos outros conhecidos do meio artístico, Chavela fumava charutos, bebia como um homem, andava armada com uma pistola e não tinha um feitio fácil. Esta espécie de ‘descida aos infernos’ levou a que fosse ‘obrigada’ a retirar-se da cena musical, em meados de 1980, devido a um problema grave de alcoolismo. Caiu no esquecimento e parecia que tudo tinha terminado, até que o realizador Pedro Almodóvar, seduzido por aquela voz e personagem a vai fazer renascer, não apenas por incluir canções suas nos seus filmes, mas sobretudo por um ato incrível de amizade e generosidade, que vale a pena sublinhar e agradecer, e que vai dá-la a conhecer à Europa e ao mundo, sendo ela de idade já tão avançada. Mas Chavela é intemporal, canta “como se já tivesse nascido com as feridas da vida e da morte”, canta as canções “como se as vivesse”.

‘Mantinha essa extraordinária habilidade de converter a dor em arte’, parafraseando Daresha. “Cantava como quem morre e punha a vida na voz.” (Inês Lourenço)

O documentário põe, diante de nós, essa mulher radicalmente livre e excessiva, de muitos amores e outra tanta solidão, com opções de vida que parecem de perdição, mas tão autêntica que nos interpela e não nos deixa indiferentes. Trata-se da “jornada alegre, dolorosa, musical e profundamente espiritual de Chavela Vargas para a auto-aceitação”. E isso não é coisa de somenos.

“Quando a música acaba – diz Catherine – ainda estou completamente imersa no seu crepúsculo. Não tenho a certeza se isso equivale a absolvição, sobrevivência, transformação ou tudo ao mesmo tempo, mas sei que a sua música me deixa transformada.” Eu diria, transtornado, apesar de nem ouvirmos assim tantas músicas.

Chavela morreu a 5 de Agosto de 2012. No seu México.

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