Atravessando os Alpes em Moncenisio

Gonçalo Cadilhe

Sabemos que Santo António passa os anos de 1225 e 1226 em França. No ano de 1224 encontrava-se em Bolonha, no norte de Itália, uma cidade localizada nesse corredor apertado entre os Alpes e os Apeninos que tem como artéria maior o curso do rio Pó.

Vou assumir que, desde Bolonha, o santo tenha seguido ao longo das margens do grande rio em direção à sua nascente e, perto de Turim, tenha iniciado a subida dos Alpes utilizando as mesmas estradas percorridas pelos peregrinos que desciam do norte da Europa em direção a Roma.

Na época do santo português, a estrada do desfiladeiro do Moncenisio era a alternativa mais comum e segura para atravessar de Turim para a França. Hoje, o túnel do Fréjus permite em menos de vinte minutos completar a mesma distância. Inaugurado em 1871, o túnel do Frejus tornou a subida do Moncenisio um exercício obsoleto e vagamente inglório. Mas claro que os meus passos pretendem repetir os de Santo António e no século XIII não havia o túnel. Entrego-me ao esforço obsoleto e inglório de, curva após curva, encosta após encosta, deixar a planície do Pó para trás e enfiar-me pelo vale de Susa acima em direção à crista das montanhas mais altas da Europa.

Viajo, portanto, ao longo de uma estrada que tem servido viajantes europeus nos últimos dois milénios. As capitais deste continente têm variado de coordenadas geográficas, de acordo com a época ou com o tema. Mas tenham sido elas Atenas ou Roma, Paris ou Londres, Stratford-on-Avon ou Bayreuth, o território a que presidiram mantém uma coesão cultural, étnica e religiosa que se consolidou nos milénios e que me faz sentir um minúsculo elo dessa cadeia existencial a que chamamos Europa. E à medida que avanço pela estrada romana do Mons Cenisum pergunto-me se o centro de agregação e irradiação deste amplo e variado espaço europeu – e não um seu obstáculo de difícil transposição – não será precisamente a cordilheira alpina.


A 2000 metros de altitude numa estrada que conheceu o seu apogeu há dois mil

Entro numa das três ou quatro pensões que se espalham pelo desfiladeiro do Moncenisio, naquela que me parece mais espartana e dedicada ao espírito da experiência – a de ficar a dormir no tecto da Europa, longe de todas as comodidades e distrações dos tempos que correm. “Queria um quarto, por favor”. A resposta deixa-me desconcertado: “Acho que não tenho, lamento”.

Moncenisio - Foto Gonçalo Cadilhe, 2016
Moncenisio – Foto Gonçalo Cadilhe, 2016

Estamos a 2000 metros de altitude numa estrada que conheceu o seu apogeu há dois mil anos e que deixou de ter utilidade há cem. Será possível que as legiões romanas estejam de novo a percorrer o Moncenisio? “Estamos lotados, com excursionistas do trekking”, diz-me. “Mas acho que houve uma desistência, deixe-me confirmar”. Vai consultar o livro de registos, um caderno grande e de capas cinzentas como os das mercearias portuguesas nos anos oitenta, e regressa com um sorriso profissional: “Afinal, sim, resta-me um quarto”. Enquanto ela preenche os meus dados, pergunto em tom casual, só mesmo para dizer qualquer coisa: “Estão abertos todo o ano?”. Olha-me como se eu fosse uma porta. Responde, seca, “Só abrimos de Junho a Setembro. No resto dos meses, a estrada está fechada”. E acrescenta, para cúmulo da humilhação: “Pela neve, percebe?”


É noite a 2000 metros acima do nível do mar. Também é noite ao nível do mar e no resto das altitudes da Europa, mas não é a mesma coisa. Termino de jantar e faço aquilo que me parece óbvio e imperativo: sair da pensão e pôr-me a caminhar.

A paisagem bucólica que eu namorei hoje de tarde – os cumes cobertos de neve, o lago reverberante no centro do vale, os prados ondulados pelo vento com os trilhos em terra batida a sugerir passeios inspirados e as colinas agitadas pelo jogo das sombras do cair da tarde – torna-se agora, com o escuro da noite sem lua, um território assombrado e inquietante. No entanto, não resisto a essa espécie de atração do abismo que é um passeio noturno no Moncenisio. Caminho sem lanterna, provocando ainda mais os meus medos e a minha imaginação.

Reparo que nesta ausência de referências artificiais e de elementos humanos, que neste despojamento medieval, conquisto uma experiência muito rara e transcendental: estou no mesmo ambiente e na mesma situação em que terá viajado Santo António.

Transporto-me no tempo a um século XIII onde a gravilha natural do terreno faria o mesmo barulho ao ser pisada pelas sandálias do viajante; os riachos impetuosos de neve apenas derretida aplacariam a mesma sede e provocariam a mesma saciedade — sim, bebo água de uma fonte que corre a partir de um riacho selvagem; a brisa fria e cortante que ataca placidamente os lábios, as têmporas e as mãos deixaria no santo o mesmo cieiro que permanece ao de leve marcado em mim. E as estrelas imóveis na sua eternidade provocariam o mesmo sentimento de insignificância perante a abóboda celeste.

Viajar hoje é mais fácil. Mas quando a viagem atinge a nota certa, o resultado é o mesmo: encontramos um lugar dentro de nós que não está ao nosso alcance nos demais dias da nossa vida. Santo António, há oitocentos anos com os seus pasmos e pensamentos; eu, hoje, com os meus. A dois mil metros de altitude, duas pulsações serenas, duas respirações cansadas, duas caras viradas para cima absortas em contemplação, dois pontinhos de luz na superfície da Terra que na luminosidade geral do Universo não irradiam absolutamente nada.

Adaptado de GONÇALO CADILHE, Nos Passos de Santo António, Clube do Autor, 2016

Gonçalo Cadilhe

Gonçalo Cadilhe, viajante e escritor, publicou livros como África Acima (2019), Nos Passos de Magalhães (2018), Nos Passos de Santo António (2016) ou Por Este Reino Acima (2020).
Nos Passos de António, o autor segue os passos de António desde Portugal até ao Norte de Itália e Sul de França, passando pela Andaluzia, Marrocos, Argélia e Sicília, reconstruindo uma viagem feita há oito séculos e descobrindo em Santo António um dos maiores viajantes da História de Portugal.
Em Por Este Reino Acima, Gonçalo Cadilhe, percorre os trilhos da viagem que o jovem Fernando terá feito no início do século XIII, de Lisboa até Santa Cruz, em Coimbra, por bosques e planícies bem no coração de Portugal, em parte por aquilo que é o Caminho Português de Santiago (Caminho Central), já então percorrido, que passa por Santarém, Tomar e Alvaiázere.

Foto da capa: Moncenisio – Foto Gonçalo Cadilhe, 2016

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