Um homem não chora. Só que sim.
Uma mulher comove-se. Nem sempre.
A nossa vida comum pode ser vista como um grande espetáculo em que as personagens desempenham os seus papéis num determinado espaço-tempo, cumprindo um guião mais ou menos pré-definido ou criando conscientemente a própria narrativa.
Neste grande espetáculo, cada pessoa ocupa o seu lugar e desempenha o seu papel em articulação com outros, já que o ser humano é sempre um ser em relação: consigo, com os outros, com o meio, com a nossa Casa Comum, com Deus.
Ser homem ou ser mulher é uma contingência fisiológica, mas também uma construção social.
Na sua fundamental obra de 1949, O Segundo Sexo (Quetzal, 2008), a escritora e filósofa francesa Simone de Beauvoir procura responder à pergunta: “Que é uma mulher?” Na impossibilidade de resumir aqui o seu longo ensaio, há que recordar uma das propostas que mais eco teve nos estudos de cultura e no feminismo contemporâneo: não se nasce mulher, o ser torna-se mulher. Isto é, ser-se mulher é um processo que procura responder às expetativas que o homem tem sobre o outro (no caso, ela) em relação a si. Ser mulher é, portanto, numa história e num mundo (ocidental, diga-se) desenhados por homens, cumprir um papel sem autonomia, o papel quase mitológico do eterno feminino.
Num programa de tertúlia televisiva com um toque de rebeldia e humor, o Irritações (programa da SIC Radical moderado por Pedro Boucherie Mendes, com Carla Quevedo, Luís Pedro Nunes, José de Pina e Joana Marques), um dos gags semanais faz-se quando Pedro Boucherie Mendes pede o “ponto de vista de mulher” a Carla Quevedo. Executando um dos truques básicos do humor, a repetição, em todos os episódios surge a “troca de galhardetes” a propósito do olhar feminino sobre o mundo.
Essa insistência é uma forma de crítica irónica e demonstra que, como habitualmente, os humoristas sabem interpretar as perplexidades e contradições do mundo. O que é isso de ser ou ver como mulher?

Sejamos claros em 2022: com tudo o que (não) sabemos podemos dizer que, se é verdade que a experiência vital e as formas de olhar o mundo dos homens e das mulheres podem ser diferentes, é igualmente verdade que essas diferenças em nada mudam a essencial dignidade humana, a mais pura dignidade inerente à condição do ser humano à procura de se realizar, numa sociedade feliz (justa e livre).
Vêm estas reflexões a propósito de um assunto que não é recente e cujos detalhes não são fundamentais, mas brevemente podem resumir-se assim: em 25 de novembro de 2021, a ministra da Saúde emocionou-se ao pedir desculpas públicas por uma declaração que fizera na véspera e que tinha sido mal acolhida pela comunidade médica.
Os comentários que ouvi e li nos media sobre as lágrimas de Marta Temido genericamente desprezaram a comoção da ministra, tratando-a com condescendência. Desprezaram-na por ser “pouco profissional” e “desajustada”. É verdade que não é de todo comum a exposição emocional no espaço público, mas enquanto nos homens é valorizada como um sinal de humanidade – vejam-se o caso de Jorge Sampaio e, noutra dimensão, as palavras emocionadas do secretário de Estado Lacerda Sales, no verão de 2020 –, nas mulheres essa exposição é vista como um sinal de fraqueza: ela não sabe comportar-se como se espera. Leia-se: ela não sabe comportar-se bem, como um homem.
Nem todas mulheres se comovem, nem todos os homens se mostram incólumes ao desgaste emocional da coisa pública. Ainda não chegámos ao momento em que as lágrimas não são notícia. Porventura é até bom que o sejam; se calhar precisamos de uma política que possa comover-se (um movimento em relação ao outro).
Talvez se as lágrimas de Marta forem tratadas com o respeito que nos merece a expressão sincera de qualquer sentimento, e sem delas se retirarem outras ilações além das do próprio contexto, então aí, talvez a nossa vida comum se enriqueça da diferença entre homens e mulheres.
Para que se cumpra o grande espetáculo do espaço público, fazem falta atores diferentes, homens e mulheres que se construam paradoxais, em relação com os outros e com o meio, enriquecendo com essas diferenças a nossa vida comum. Também quando se emocionam em privado. Também quando choram em público.
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