A Igreja e a Europa no tempo de Santo António
Até aos 20 e poucos anos, António não é António, mas Fernando. Nasce em Lisboa no final do séc. XII (15 de agosto de 1195) e morre nos inícios do séc. XIII (13 de junho de 1231).
Lisboa tinha sido reconquistada aos mouros uma centena de anos antes e a Europa, como sempre de resto, estava marcada por divisões políticas e permanentes conflitos entre as classes sociais. Mas o que saltava à vista e afligia mais era a contenda entre o papado e o império.
Por detrás destas lutas pelo poder, assistia-se a outro fenómeno significativo: a renovação da vida eclesiástica, a reforma da Igreja e a reevangelização da Europa, graças a um Papa de grande visão, Gregório IX, que se ocupou das coisas de Deus e da tão precária situação dos bispos, padres e fiéis. Mérito deste grande pontífice foi o de ter lançado nesta missão evangelizadora da Igreja as ordens mendicantes: franciscanos e dominicanos. Foi ele que canonizou Francisco de Assis, em 1228, António de Lisboa, em 1232 e Domingos de Gusmão, em 1234: um trio maravilha!
O jovem Fernando: de Lisboa a Coimbra
A santidade de Fernando, o futuro António, germina em Lisboa, ao pé da porta de casa, nas ruas e becos à volta da Sé, em Alfama.
Na época medieval não havia o cuidado de registar e festejar o dia do aniversário, portanto não temos registos da data de nascimento de António. Podemos, contudo, fixar o ano do seu nascimento, em 1195, graças às suas primeiras biografias – a Assidua, a Raymundina, a Benignitas e a Legenda dos Mártires de Marrocos –, textos redigidos no séc. XIII em diferentes áreas geográficas: Pádua, França e Portugal. Na época barroca, ao ano de nascimento foi acrescentado o dia e o mês: 15 de agosto. Uma das primitivas biografias especifica ainda que os pais, muito novos, tinham uma moradia digna do seu estado de nobreza, do lado ocidental da catedral de Lisboa e que na “sagrada pia batismal deram-lhe o nome de Fernando”.
Faltam-nos dados suficientes para reconstituir o ambiente familiar de António, a sua infância e a sua personalidade. Mas porquê esta escassez de informações biográficas?

Talvez o primeiro responsável seja o próprio António que, ao longo da sua vida, na relação com os frades e nos ambientes por onde passou, sempre primou pela discrição. Nunca falava de si mesmo, da sua origem nobre, dos títulos familiares, dos seus colegas de infância, dos seus êxitos académicos… Desde a sua juventude, nunca foi uma pessoa autorreferencial!
Contudo, apesar das parcas informações que possuímos, é possível, com base nas crónicas da vida social e eclesiástica daquela época, relativas a Lisboa e Coimbra, obter dados interessantes para a compreensão do jovem Fernando.
O Concílio Lateranense III, celebrado em 1179, tinha dado indicações concretas no que diz respeito à formação do clero: cada sede episcopal tinha a obrigação de dispor de uma escola de formação para os jovens que aspiravam à vida clerical ou para quem desejasse aprofundar a cultura sacra. E o episcopado de Lisboa assumiu a sério a formação dos seus jovens.
Daí que, entre os 6-7 anos e a adolescência, Fernando tenha recebido uma sólida formação catequética e litúrgica, mas também nas outras disciplinas, como a gramática, a escrita, a aritmética, a música, a geografia, a história e as ciências.
Foi neste ambiente que surgiu em Fernando o desejo de se consagrar ao Senhor e de ingressar no Mosteiro de São Vicente de Fora, para viver entre os cónegos de Santo Agostinho, que representavam para ele o ideal evangélico.
O mosteiro erguia-se numa colina de Lisboa, com uma vista ainda hoje deslumbrante sobre o Tejo. Dependia do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, fundado por São Teotónio, também ele um eminente santo português.
As bibliotecas de São Vicente e de Santa Cruz eram do melhor que havia em terra lusitana para a formação intelectual e espiritual dos cónegos de Santo Agostinho, que mantinham contactos com os mosteiros franceses, sobretudo São Vitor, em Paris.
Em são Vicente de Fora, o jovem Fernando – escreve o autor da Assidua – “viveu ao longo de dois anos”. Depois, não suportando mais a contínua pressão dos amigos e familiares que queriam fazê-lo desistir, obtém autorização de transferência para Coimbra, para aí prosseguir a sua formação religiosa e o seu discernimento.
Com 15 anos de idade, Fernando despediu-se do ambiente familiar, social e eclesial de Lisboa. Terá tido saudades da luz e da brisa suave da cidade das sete colinas e dos cheiros entre Mouraria e Alfama? Não o sabemos.
Mas sobressai o perfil de um jovem discreto, transparente, disponível, livre, inteligente e simples. Desde cedo, teve um guia espiritual que o introduziu na escola da catedral. Não se deixou assustar e arrasar pelos momentos de turbulência que normalmente aparecem no tempo da adolescência, como aquela vez que contrariou as tentações do demónio traçando uma cruz na pedra da torre da catedral.
Foi decidido no caminho de discernimento vocacional, primeiro no mosteiro de São Vicente de Fora e depois no de Santa Cruz em Coimbra. Enfrentou com seriedade a formação académica e monástica em Santa Cruz, apesar dos maus exemplos e de brigas internas por parte de alguns monges, de que Fernando não fala publicamente.
Aprende a guardar no seu íntimo e a procurar ser coerente e honesto. Contudo cresce nele uma “santa inquietação” (Papa Francisco) que não o leva a refugiar-se num individualismo e numa vida medíocre, mas sim a sonhar uma “vida mais além”.
O jovem monge lisboeta Fernando, é modelo para os jovens do nosso tempo de uma vida contracorrente. Contra uma vida medíocre e do sofá; contra a maré de comodismo, da indiferença e do individualismo; contra a corrente do poder e da luta pelo poder da imagem. São todas dimensões que encontraremos, mais tarde, na pregação itinerante do frei António.
O frade António, vocação missionária e ao martírio
No ano de 1219, em Coimbra, Fernando – fresco de estudos monásticos e acabado de ser ordenado sacerdote – encontra, pela primeira vez, um grupo de frades oriundos do centro de Itália que se preparavam para ir a Marrocos com o intento de evangelizar os muçulmanos ou, pelo menos, pregar no meio deles. Acabaram por ser perseguidos e martirizados de forma atroz: era o dia 16 de Janeiro de 1220.
Este encontro, talvez um pouco fortuito, com estes frades tão simples e jubilosos, deixou uma marca indelével no ânimo de Fernando, que, ao ver regressar, meses depois, os seus corpos sem vida e desfeitos, não hesitou em pedir algo que já andava a remoer no seu íntimo e que ia com certeza causar algum burburinho: trocar o Mosteiro de Santa Cruz pela Ermida de Santo Antão dos Olivais.
No auge do seu curriculum de monge e sacerdote, Fernando deixou para trás o nome escolhido pelos pais, os títulos académicos alcançados e iniciou uma nova aventura no eremitério, nas periferias da cidade universitária de Coimbra. O seu desejo era tornar-se um verdadeiro missionário, ao jeito daqueles frades simples, genuínos e jubilosos, que tinha encontrado na portaria do mosteiro de Santa Cruz a mendigar pão.
Na colina extramuros dos Olivais, Fernando despe a alva monástica e veste a túnica simples, próxima do traje dos pobres camponeses e peregrinos do seu tempo.
Revestido de uma nova identidade com o nome do santo eremita do deserto, António, inicia um tempo de noviciado, vivido na prática da vida fraterna, penitencial e itinerante.
Depois de alguns meses, António não receia comunicar aos seus superiores o sonho que acalenta: ser missionário tal como aqueles frades! Devia ser bastante teimoso, este noviço franciscano, que, em tão pouco tempo, conseguiu deixar para trás Coimbra – como um dia deixara Lisboa – e chegar até Ceuta, na África magrebina.
Mas a doença e uma viagem aventurosa afastaram-no quer do sonho missionário em terras islâmicas, quer da sua terra natal, Portugal. Em 1221, na altura da festividade do Pentecostes, António aparece em Assis no Capítulo Geral – uma espécie de grande jornada da juventude dos frades de toda a Europa de então – mas ele, António, era ainda, um ilustre desconhecido.

Sete anos mais tarde, a situação é totalmente diferente: o frade lusitano ocupava entre os Menores um lugar eminente e visível. Podemos afirmar isto não apenas pelo sucesso alcançado na pregação e na formação bíblica, teológica e pastoral dada aos frades, mas sobretudo por ter sido escolhido como ministro provincial para o norte de Itália e como membro de uma delegação de frades que, em 1230, foi enviada ao Papa Gregório IX para pedir esclarecimentos sobre alguns pontos da Regra e do Testamento de São Francisco.
A vida de António é breve, mas intensa. Nos últimos dias dedica-se à contemplação e à pregação junto do povo de uma pequena vila a vinte quilómetros de Pádua, Camposampiero.
É de lá que, no final da tarde do dia 12 de Junho de 1231, um carro puxado por bois leva António, doente, para Pádua, cidade onde quer acabar os seus dias. Chega às portas da cidade, ao pé da igrejinha do mosteiro das Clarissas, Arcella. Morre sussurrando “Vejo o meu Senhor!”. Dez meses depois é canonizado, graças à insistência do povo e do município de Pádua.
É significativo que o santo lisboeta tenha sido um dos primeiros santos dos inícios da epopeia franciscana. E não foi graças a Francisco que se converteu à vida minorítica, mas sim graças ao martírio daqueles cinco frades que queriam converter o mundo islâmico. Afinal, os cinco primeiros mártires franciscanos “perderam a cabeça”, mas conquistaram para as suas fileiras o Santo que, ainda hoje, é o mais amado no mundo cristão e o mais venerado entre os muçulmanos.
O Santo da Palavra
Nas Fontes Franciscanas (uma antologia dos Escritos e Biografias sobre São Francisco de Assis) encontramos António de Lisboa citado umas quinze vezes. A imagem que sobressai é a de pregador itinerante (praedicator) em obediência fiel ao mandato recebido de São Francisco. Uma segunda característica de António é a de primeiro mestre de teologia da ordem franciscana.
Finalmente, a terceira é a função ministerial: ministro da província da Lombardia, assumindo um papel diretivo na vida dos Frades Menores.
São Boaventura, outro grande santo franciscano, apresenta António como “verdadeiro arauto” de Francisco, sobretudo pela sua função de pregador. O Papa Gregório IX, abismado com a sua sabedoria, chama-lhe “arca do testamento”.
António foi, deveras, o “Santo da Palavra”, um anunciador da alegria do Evangelho aos pobres, para utilizar uma terminologia amada pelo Papa Francisco.

Frei Fabrizio Bordin
Delegado Provincial dos Frades Menores Conventuais em Portugal.
Guardião do Convento de São Maximiliano Kolbe, Lisboa. Pároco das paróquias de São Maximiliano Kolbe, Santa Clara e Santa Beatriz, Chelas, Lisboa.
Foto da capa: Coimbra – Igreja de Santo António dos Olivais. Foto MSA 2020.
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