À Laura Pontual, pintora de orquídeas.
À Matilde Sousa, Ema Sousa, Martim Sousa e Lucas Borba – os fios do futuro.

A memória é um retrato feito de alta tecnologia.
É tão surpreendente que se consegue o movimento daquela imagem capturada.
Uma linda orquídea branca foi-me oferecida há um ano. Chegou no meu aniversário, acompanhada com um postal amoroso. Encheu-me de alegria e presença. Encantou a casa durante mais de um mês. Depois, suas pétalas de veludo escureceram e secaram. Faz parte da eternidade das coisas − a transformação. Elas, voltaram a florescer faz poucos dias, após um ano. Estão exuberantes.

Enquanto vivo o silêncio da casa, a música calma de Debussy respira nos meus ouvidos e o meu olhar mergulha naquelas orquídeas brancas. A música leva-me para celebrar a vida. Ali, revisitei muitos aniversários. Todos ou quase todos, bonitos e felizes. Esperançados.
Aniversário é dia de agradecer, ou deveria ser… É sinal de que se festeja mais um ano. Mais um começo. Onde se aguarda que a vida se reinicie no ponto que começou… mas não é possível. Assim, nos resta abrir o álbum de fotografias que guardamos na memória. Por vezes, a fotografia está tão bem guardada que nos parece o agora. A memória é um retrato feito de alta tecnologia. É tão surpreendente que se consegue o movimento daquela imagem capturada. Com este, surgem as cores, os volumes, os aromas, as texturas e até os sons… tudo convertido em presente. Imaginem, ouvem-se até vozes. Tudo com perfeição.
É tão espetacular e humana que posso ouvir a voz da minha mãe, preparando-me o dia: – Feliz Aniversário minha filha! O teu vestido está lindo. A tua avó bordou-o com missangas azuis e transparentes que são florzinhas pequeninas a salpicarem a parte superior do vestido. Vais ficar linda. — Diz-me a mãe, entregando-me a minha prenda — uma malinha branca que eu adorei. Eu sorri levemente. Apenas levemente. Naquela época eu não sabia o que era uma alegria descontida (era uma miúda tímida e que fabricava sonhos). Nem sequer se ouvia a minha voz, pois a vida era passada nos esconderijos das ideias, onde a imaginação me fazia ser possibilidade e ter asas de viajar para longe e em voos infinitos.
A minha mãe perguntava-me: — Menina, em que tanto pensas? Eu respondia-lhe: — Vejo pássaros que vieram de longe. Para me buscar mãe. Mas é segredo e… eu não vou. Se eu for, nunca mais estarei contigo. Eles disseram que posso visitar o lugar de onde eles são. E a mãe respondia-me: — Não existem pássaros nenhuns!. A minha mãe era uma mulher de afetos. Cuidava de tudo e de todos, mas era pragmática. Gostava da realidade, embora fosse muito criativa. Recriava o mundo a cada dia como se fosse a deusa grega, Atena. Puxava do seu ventre, os mais variados e criativos fios da vida, tal como fazem quase todas a Mulheres.
Lembrando-me dela, lembro-me de todas as mulheres que me habitam, como se fossem deusas tecelãs da vida. A mãe gostava de enfeitar a casa com flores e contava muitas histórias. Era sábia no lidar com os afetos e respeitar a dimensão do outro. Suas mãos ligeiras e atentas cuidavam de tudo, inclusivamente, das nossas infâncias. O seu sentido de liberdade e ousadia era grande. Mas a sua época a enformou. Entretanto, ainda assim, foi o meu maior exemplo de liberdade e autonomia.
Volto ao álbum e vejo uma menina à espera da sua festa de aniversário. Vestida com o seu vestido cor-de-rosa aguardava os convivas. Segurava o grande portão de grades azuis e olhava expetante: — Será que os convidados vêm? Será que me trazem prendas? Quem me dera que alguém me trouxesse um pássaro-de-cordas…
A festa terminou e a menina mergulhou nas missangas do vestido à procura dos seus amigos invisíveis. Mergulhou no mar e caminhou pelos arrecifes…fez castelos-de-areia e visitou lindos jardins, onde encontrou seus pássaros que não eram de corda. Brincou e dançou. A festa acabou à beira do portão.
Onde está o retrato? Abriu-se uma nova orquídea branca naquela manhã de aniversário. À janela, está a menina. Vestida com um vestido azul com muitas florzinhas e fitas vermelhas; típico das festas de São João. A mãe fizera-lhe duas lindas tranças, arrematou-as com laços de cetim. A menina, da beirada da janela, tenta tocar na alegria dos convivas. A música de São João faz as crianças dançarem à volta da mesa estendida no jardim. Bandeiras coloridas tremulam com o vento. Risos e alegria preenchem a festa.
Naquela época não existiam os manjericos e suas quadras. Não existiam o outro lado do oceano. Da janela, a menina olha as crianças que crescem. O envelhecer dos adultos. A casa que se transforma. Os tios que partem e trazem as tias…a casa cheia de vidas que esperam pelo futuro…
A cada aniversário, uma mudança. Uma ida e um retorno. O clique da fotografia a suspender a alma das coisas. Pedacinhos de loiça e uma tigela antiga fazem cenário. O tom da memória que se guarda espontaneamente… Aniversários que se celebram para a vida toda, pois em cada ano iniciado se carrega os outros anos vividos. Agradeço a máquina que fotografa as memórias. Ela traz-me para perto a voz da minha mãe, os objetos repousados no tempo, o olhar da minha pequena irmã, a máquina de costura da minha avó. O sorriso largo do meu avô. O meu pai bonito e vaidoso junto ao seu jipe moderno. O terraço de conversas e a cozinha festiva.
O tempo continuum e tecido por Atena segue a direção do eterno. Somos todos feitos da mesma matéria, tempo e espaço. Memória. Gratidão aos que nos ensinaram a lição da eternidade. De repente, um raio de sol iluminou o pequeno canteiro e eu vi fios de seda branca, tecendo as orquídeas do próximo ano.

Como Dom Hélder Câmara, o bispo revolucionário,
eu acredito em cavalinhos-azuis e foi a minha mãe
que os teceu com amor e ofereceu-me um, em cada aniversário.
Tenho muitos!
Fotos: Orquídeas, jordieasy – stock.adobe.com
e fotos antigas do arquivo Nela & Dino, Cabo Verde, anos 50/60.
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