
Ana Leão Varela é católica, casada, mãe de dois filhos, de 10 e 7 anos, e Jurista especializada em Direitos Humanos. Trabalha, há mais de 15 anos, na área das migrações, servindo refugiados e migrantes vulneráveis. Entre 2012 e 2015, viveu com a família em Timor-Leste. Em 2016, foi voluntária da Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR), na Grécia.
Como interpreta hoje o papel das mulheres e sua participação na vida da Igreja?
Acredito que as mulheres são a mão feminina de Deus, na Igreja e no mundo. Há vários anos atrás li o livro “O regresso do filho pródigo” de Henri Nouwen. Este extraordinário livro consiste numa meditação sobre a célebre parábola de Jesus, a partir de um quadro de Rembrandt, com o mesmo nome da parábola. Nesta inspirada pintura, o pai abraça o filho ajoelhado a seus pés. Nouwen faz-nos notar que uma das mãos do Pai é mais larga e musculada e a outra mais fina e delicada. Este Deus, que é Pai e Mãe, dá-nos o Seu filho único, gerado pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria. Em Deus, a feminilidade e masculinidade, maternidade e paternidade, estão plenamente presentes.
Penso que a participação das mulheres na Igreja, ao longo dos tempos, e nos dias de hoje, faz-se trilhando o caminho da santidade, no dia-a-dia, com ações concretas de amor e serviço ao próximo, em diferentes contextos económico-sociais e culturais e assumindo diversos papéis (consagrada, leiga, esposa, mãe, profissional).
Enquanto mulher, fale-nos um pouco sobre a sua experiência concreta de participação na Igreja.
A palavra Igreja, tem origem em eklesia, que significa o Povo de Deus reunido. Enquanto mulher cristã, sinto-me um membro desta comunidade universal, desta grande família que caminha e reza, nos cinco cantos do globo, a um só coração, com o nosso Papa.
Desde cedo me senti inspirada pelo Evangelho e pelo testemunho de alguns familiares e pessoas que se foram cruzando no meu caminho. Senti que era chamada ao serviço dos mais pobres e vulneráveis e desejei ardentemente ir ao seu encontro e advogar por eles. Iniciei assim, desde muito jovem, uma intensa atividade de serviço, visitando prisões e lares de idosos, dando explicações a crianças em bairros sociais, indo em missão para outros países, na Europa e em África.
Mais tarde, a vocação do matrimónio e da maternidade tornaram-se a minha primeira missão. Todavia, esta missão, trouxe a responsabilidade acrescida de educar na fé, através do testemunho, e uma renovada disponibilidade para o serviço, na comunidade paroquial e na sociedade. Pelo caminho, uma vivência familiar em Timor-Leste.
Ao longo de quase vinte anos, dediquei-me a servir migrantes estrangeiros e refugiados, profissionalmente, como jurista, e como voluntária. Posso afirmar que, através das suas histórias (que uma vez partilhadas, passaram também a ser a minha história) tenho testemunhado o melhor e o pior da humanidade. Em cada refugiado habita a humanidade inteira.
O apelo do Papa Francisco, em setembro de 2015, para que cada paróquia, comunidade religiosa, mosteiro e santuário de toda a Europa acolhesse, pelo menos, uma família de refugiados, conduziu-me a uma das experiências mais bonitas na Igreja.
Na minha comunidade paroquial (Algés – Miraflores) e na comunidade da Cruz Quebrada – Dafundo surgiu este desejo de acolhermos, em conjunto, uma família refugiada, através do Programa de Recolocação da União Europeia e do Programa “PAR Famílias” da Plataforma de Apoio aos Refugiados.
Disponibilizei-me, com alegria, junto com outras pessoas da comunidade, para ajudar a realizar esta missão. No entanto, a “nossa família” tardava em chegar. Acabei por partir em missão um mês para a Grécia, como voluntária da PAR, após decisão partilhada com o meu marido e filhos. Digamos que, apesar de ter ficado em Portugal, a minha família esteve sempre presente e esta foi uma missão verdadeiramente familiar, apenas possível pelo esforço de todos. Ainda na Grécia, recebi a ansiada notícia de que a nossa comunidade paroquial ia finalmente acolher uma família síria. Regressei para o abraço a esta nova família, tão desejada, composta por avós, filha e neto bebé.
Hoje, decorridos dois anos desde a chegada da família, estando já pai e filha integrados no mercado de trabalho e a falar um tímido português, posso afirmar que, quando o coração de uma comunidade se abre à hospitalidade, quando uma comunidade acolhe e se deixa acolher, dá-se uma revolução! Somos agora uma comunidade mais forte e mais rica, transformada pela partilha da nossa história e cultura, sabores e saberes.
Na sua opinião, falta fazer caminho para que as mulheres assumam um papel mais ativo na Igreja?

Acredito que sim. Ainda há caminho a percorrer. O Concílio Vaticano II, de 1962, teve um profundo impacto na renovação da Igreja Católica, de aproximação entre a hierarquia e os fiéis e de abertura ao mundo. Importa não esquecer que alguns dos serviços realizados atualmente por leigos, homens e mulheres, nas respetivas paróquias, e que eu própria já realizei, simplesmente não eram possíveis antes deste Concílio.
Serviços tais como, ler as escrituras, cantar o salmo no ambão ou distribuir a comunhão quando necessário, são, na verdade, muito recentes. Mas, ainda hoje, alguns serviços, quando realizados por mulheres (acolitar, é disso um exemplo), não reúnem consenso, apesar das diretrizes oficiais da Igreja.
Na minha opinião, o facto de a ordenação sacerdotal ser reservada apenas aos homens tem implicações. Não quero aqui colocar em causa as diretrizes da Igreja nesta matéria, mas deter-me num facto que tem a suas consequências. Na hierarquia da Igreja, do Vaticano aos Seminários, o contexto é marcadamente masculino. Ainda que a intenção possa não ser essa, a verdade é que as mulheres acabam por estar arredadas dos principais círculos de reflexão teológica, acabando a Igreja por ser fortemente marcada por uma linha de pensamento masculina.
No Evangelho impressiona muito a fé e o inabalável sim de Maria, num tempo histórico em que a condição social da mulher era bastante má. Solteira e grávida, arrisca-se a ser repudiada pelo noivo José e lapidada até à morte, como era costume na época (e infelizmente ainda continua a ser, nalguns países). Na verdade, a condição da mulher no mundo permanece desvantajosa, apesar dos inegáveis avanços conquistados e da crescente participação política e económica das mulheres. De acordo com dados da ONU, as principais vítimas de direitos humanos no mundo são as mulheres, de várias idades, raças e nacionalidades. São elas as que mais sofrem com problemas, tais como, mortalidade materna, violência doméstica, escravidão moderna, tráfico de pessoas, prostituição, turismo sexual, violação, mutilação genital, casamento forçado e precoce, falsa igualdade política e profissional. Esta desvantagem tem-se refletido em todas as esferas, incluindo a religiosa.
O Papa Francisco reconhece que é urgente oferecer espaços à mulher na vida da Igreja, sendo desejável uma maior presença feminina e maior envolvimento em responsabilidades pastorais, acompanhamento de pessoas, famílias e grupos, assim como na reflexão teológica. O Papa tem encorajado a presença eficaz das mulheres na esfera pública, no mundo do trabalho e nos locais onde são adotadas as decisões mais importantes, incluindo na comunidade eclesial, reconhecendo a importância de as mesmas assumirem responsabilidades sociais e eclesiais, em harmonia com a vida familiar.
No Evangelho, certas atitudes de Jesus manifestam a vontade de libertar a mulher da sua condição desvantajosa, que permanece, por incrível que pareça, até aos dias de hoje. Jesus acolhe os mais vulneráveis, salva a humanidade inteira, não exclui ninguém.
Gosto de pensar assim numa Igreja que abraça todos os seus fieis e o mundo, como a imagem do Patriarca do Regresso do Filho Pródigo de Rembrandt, com uma mão masculina e outra feminina. Ambas as mãos são diferentes. Mas ambas se complementam na unidade, no Amor de Deus. Ambas participam do abraço, as duas mãos e não apenas uma, ou uma mais do que a outra.
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