América: cristianismo domina ou liberta?

Cruzado o estreito, a armada espanhola respirou aliviada ao alcançar o “Pacífico” oceano. Para trás ficaram as civilizações asteca, maia, inca, suas mitologias, os sacrifícios extremamente chocantes, ritos e cerimoniais complexos.

Na região amazônica, no litoral atlântico e nas terras meridionais, os “índios” ainda acreditavam, ou esperavam, que a chegada de seres tão estranhos não trouxesse desgraças.  Cada nação indígena possuía crenças e rituais religiosos diferenciados e mitos que contêm a história do mundo. Todas as tribos acreditavam nas forças da natureza e nos espíritos dos antepassados.

Na América do Norte, os “brancos” ainda não haviam chegado para tomar posse. No Sul, a Terra de Santa Cruz oferecia pau-brasil (mais tarde produzirá açúcar e ouro); em terras apropriadas pela Espanha, a fome de ouro devorava os conquistadores. Tudo era dos recém-chegados: o papa Alexandre VI, pela Bula Inter Coetera (3 de maio de 1493), tinha-lhes concedido as terras descobertas e a descobrir; em contrapartida, deviam evangelizar. Qual evangelização? Um sacerdote maia desabafou: “(Os senhores brancos) ensinaram o medo e vieram murchar as flores; para que viva a flor deles, aniquilaram e aspiraram a flor dos outros” (Livro de Chilam-Balam de Chumayel).

Os indígenas… “Que primeiro aprendam a ser homens e depois cristãos”, foi dito. Ao catequizá-los, primeira providência era colocar roupa para cobrir as suas “vergonhas”. Evangelizar significava ensinar-lhes as rezas básicas do catolicismo, impor cultura e religião nos moldes europeus. “Conquistar primeiro para evangelizar depois”, dizia o frei Juan de Sepulveda em polémica com o frei Bartolomeu de Las Casas e Juan de Silva que preconizavam conversão mediante persuasão e “não pela coerção, pois dominação e evangelização são irreconciliáveis”.

A escravidão, uma das maiores fontes de riqueza, era instrumento para tocar o projeto colonial. Por isso, apesar de pronunciamentos de papas contrários à prática, não houve oposição. A religião, instrumento para a manutenção da ordem social, “funcionava na maioria dos casos como uma lavagem cerebral no sentido de inculcar nos escravos as virtudes da obediência servil, da paciência passiva, da dependência, da entrega de sua dignidade”, diz o historiador Hornaert. Admiramos São Pedro Claver que dedicou sua vida para aliviar os sofrimentos dos escravos, mas a prática da escravidão encontrava defensores. Até o padre António Vieira, que se insurgia contra a escravidão dos índios, lamentava os sofrimentos infligidos aos escravos negros, mas afirmava que somente o corpo é a desventurada mercadoria de propriedade dos senhores dos engenhos. A alma, consolidada pelo batismo, irá compartilhar da mesa no céu servida pelo próprio Deus, na “segunda transmigração”: alforria vigorante só no além. Em terras espanholas, alcançado o perdão do pecado original, estaria aberta a porta do céu, mas os indígenas deviam pagar pelo “privilégio” com o trabalho compulsório da encomienda e da mita.

Orixa Ossain Orossi, 2008. Foto Toluaye / Wikimedia Commons.
Orixa Ossain Orossi, 2008. Foto Toluaye / Wikimedia Commons.

Hoje…

No Brasil, proibidos de exercer sua religião, os escravos, para escapar da censura imposta pela Igreja, associavam às imagens dos santos católicos os “Orixás”, representantes das forças sagradas da natureza. O “Candomblé”, apesar de proibido e até criminalizado por alguns governos, manteve vivas as raízes africanas dos escravos. Em terras dos impérios pré-colombianos, nas comunidades nativas, forçadas a aceitar o catolicismo, sobreviveram crenças profundas que davam sentido ao viver. Ernestina López, teóloga e historiadora, confirma: “Para estes povos, Deus é a explicação, o sentido de tudo o que têm e da vida. A natureza é manifestação de Deus”. Por isso, a relação terna e amorosa com a mãe natureza – Pacha Mama, a Mãe Terra, concepção que inspira, hoje, movimentos para a defesa da natureza que pede arrimo e ajuda para a sua sobrevivência.

Teologias

“Precioso tesouro da Igreja Católica na América Latina”: assim o Papa Bento XVI qualificou a religiosidade popular. No âmbito especificamente teológico, assiste-se à revalorização da cultura e da religiosidade popular: é a Teologia do Povo. O povo latino-americano, sujeito histórico-cultural, avivou a religiosidade popular como uma forma inculturada de autêntica fé cristã católica considerada, portanto, “fruto do Verbo”. Reconhece-se que o povo latino-americano foi evangelizado; por isso no Documento de Aparecida fala-se oficialmente de espiritualidade e de mística populares.

Isso inspira o Papa Francisco no empenho por “uma Igreja pobre e para os pobres”, no respeito da tradição e da cultura do “povo de Deus “. A Teologia do Povo anda de braço dado com a chamada Teologia da Libertação, cuja premissa é a opção preferencial pelos pobres, a mesma de Jesus que “ao ver as multidões, teve compaixão delas, porque estavam aflitas e desamparadas, como ovelhas sem pastor” (Mt 9, 36). As ciências humanas e sociais auxiliam no entendimento e superação das injustiças. Em sintonia com essas “teologias”, e com a preocupação ecológica expressa na encíclica Laudato Si’, Papa Francisco convocou o Sínodo da Amazônia, com o objetivo de “identificar novos caminhos para a evangelização daquela porção do Povo de Deus”: povos frequentemente esquecidos e sem perspectivas de um futuro sereno, também por causa da crise da floresta amazônica, pulmão de capital importância para nosso planeta. O cardeal Baldisseri confirma: “A Igreja deve evangelizar através da promoção humana, um elemento típico da ação pastoral na América Latina… A denúncia profética tem um valor para a promoção humana e a credibilidade da evangelização da Igreja”.

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