Ghalia Taki
Chamo-me GhaliaTaki, sou da Síria e estudei tradução Inglês-Árabe. Saí da Síria em 2003 quando casei. Vivi 3 anos na Nigéria e 9 anos no Gana. Cheguei a Portugal com a minha família, marido, filho e mãe, em 2014.
Sou da capital, Damasco, a cidade conhecida pelo nome Cidade do Jasmim, devido à abundância das árvores do jasmim, que é comum em todas as ruas e casas. É por isso que o cheiro do jasmim é o que distingue esta cidade de outras cidades da Síria.
Sou filha única para a minha mãe, mas tenho irmãos paternos. O meu pai casou muito cedo e teve filhos em tenra idade. Também os meus irmãos casaram muito cedo e tiveram filhos em tenra idade. Quando a primeira mulher do meu pai morreu, o meu pai casou-se com a minha mãe e antes de eu nascer já era tia.
Em 2001, perdi o meu pai. Ele era um homem sábio e bem conhecido na sociedade em que vivíamos. Teve uma grande experiência na vida, morou em vários países árabes e estrangeiros, devido ao seu trabalho com o mármore (Líbano, Arábia Saudita, Marrocos, Suíça, Itália, China e mais).
Cresci habituada a ver a nossa casa aberta para receber familiares e estrangeiros para fornecer assistência aos vários problemas, financeira e moralmente. À noite após o jantar, os adultos encontram-se após o trabalho para conversar e discutir os problemas e como resolvê-los. E todas as sextas-feiras (fim de semana na Síria) tínhamos um encontro semanal para toda a família com as crianças, além dos amigos e dos conhecidos.
Esses encontros têm uma grande importância nos nossos costumes. No meu país, o conceito de família é mais amplo do que o que inclui apenas membros de uma mesma família, incluindo vizinhos, amigos e conhecidos, independentemente da sua religião ou etnia. Eu sei que é difícil de acreditar nisso, e parece que estamos a falar sobre o País das Fadas, mas essa era a verdade no meu país.
Na Síria existe uma grande diversidade multicultural e étnica que não se encontra em nenhum outro país. Todos viviam juntos, misturados, não existiam bairros divididos como em outros países. O que uniu os diferentes grupos foi a existência de uma única base cultural e um grande respeito pelos costumes e tradições, independentemente das diferenças religiosas e étnicas. Celebram sempre as suas celebrações religiosas todos juntos.
No passado, as casas na Síria eram muito grandes e consistiam em dois ou três andares, com um pátio aberto no meio e uma fonte de água, semelhante às casas andaluzas, para poder acomodar avós, pais, filhos e, às vezes, netos. A família estava acostumada a compartilhar todos os detalhes da vida, os seus problemas, as suas alegrias, até mesmo a comida, mesmo nas circunstâncias mais difíceis da vida.

Um dos costumes mais importantes é respeitar os horários das refeições, e todos os membros de uma mesma família sentam-se para compartilhar comida, conversar e trocar ideias. Muitas vezes, encontram-se pratos oferecidos por vizinhos, pois é um hábito agradável compartilhar a comida, principalmente em ocasiões especiais. Mesmo quando os filhos decidem mudar-se para morar em casas separadas, essas reuniões familiares semanais continuam, pois são muito importantes.
Hoje, lamento muito que o meu filho não tenha tido a oportunidade de vivenciar momentos tão íntimos em família.
Entre os costumes importantes também está o respeito pelos idosos, compartilhando com eles todos os detalhes da vida e beneficiando das suas opiniões e experiências. Na Síria, não temos muitos lares para cuidar dos idosos, porque fomos educados a respeitar o dever de cuidar dos idosos e não deixá-los viver sozinhos.
Infelizmente, no nosso país, a segurança social tem poucos recursos e cobre apenas aqueles que atuam no campo das instituições governamentais. A única garantia para os pais na reforma é a presença de um grande número de filhos para que possam compartilhar as tarefas de cuidar dos pais quando crescerem, pois esses filhos são a verdadeira riqueza dos pais. É por isso que, mesmo quando o filho viaja, o cuidado dos pais continua a ser obrigatório enviando dinheiro para as despesas de subsistência, mesmo que eles não precisem.
Cada um de nós precisa de ajuda em todas as fases da sua vida, este apoio pode nem sempre ser financeiro, alguma orientação e ajuda humanitária é mais importante, como a que recebemos quando iniciámos a nossa vida em Portugal.
Durante o período de nossa integração no país, passámos por muitos obstáculos e dificuldades e ainda os estamos a viver. Mas sempre encontramos pessoas que nos a apoiam e orientam. Por exemplo, comecei a trabalhar nos Serviços Jesuíta aos Refugiados em 2015, como tradutora de inglês para árabe, apesar da minha falta de proficiência em português e de não conhecer todas as leis do trabalho portuguesas. Desde o primeiro dia, fui tratada como cidadã portuguesa e recebi apoio de todos os colegas até começar a ganhar experiência e a aprender português. O meu trabalho foi uma porta de entrada para conhecer a sociedade portuguesa mais rapidamente e nos mínimos detalhes. Assim, pude começar a trabalhar em mediação cultural além da tradução.
Viemos da uma das cidades mais antigas na história do mundo, de Damasco, na Síria, considerada berço de civilizações, um país que há centenas de anos recebe e acolhe milhões de pessoas das várias nacionalidades, árabes e estrangeiros, circassianos, arménios, gregos, palestinianos, kuwaitianos, iraquianos, libaneses.
Foi muito importante para nós estabelecermo-nos num país que tem uma história, segurança, tem costumes, tradições e regulamentos para que o nosso filho consiga crescer num bom ambiente.
Na nossa religião islâmica, acreditamos que tudo acontece por uma razão. Todos nós temos desejos e sonhos, mas Deus escolhe sempre o que é melhor para nós, por isso acreditamos plenamente que a nossa chegada a Portugal tem uma certa sabedoria de Deus.
Portugal é um país católico e está, em certa medida, comprometido com os ensinamentos e regulamentos da religião em comparação com os restantes países europeus. Muitos desses ensinamentos e regulamentos são partilhados pelos ensinamentos da religião islâmica, o mais importante dos quais é a tolerância e aceitação dos outros, mesmo com as diferenças. A empatia e o carinho que muitos dos portugueses têm, foi um dos principais motivos para nos estabilizarmos em Portugal.

Um dia, enquanto estava a passear pelas ruas antigas de Lisboa, passei por uma árvore do jasmim, cheirei o perfume e, de repente, as memórias passaram por mim e trouxeram-me de volta à infância. Chorei, mas ao mesmo tempo sorria porque acredito plenamente que as cidades têm almas como os humanos, que podem tocar-nos e permanecer nas nossas almas. Lisboa, esta cidade tem um encanto estranho que te faz apaixonar à primeira vista e fica no teu coração.
Esta magia que faz com que você, sempre que saia fora e volte, sinta a alegria a entrar no coração, dando-lhe a sensação de que voltou para casa. Os países não são apenas terra, edifícios ou estradas. Os países são valores humanos. O meu pai, com a experiência e o multiculturalismo que teve, acreditava que a casa e os pais são a base.
Sim, estamos abertos às diferenças, acreditamos que é muito importante conhecer a cultura da sociedade em que vivemos, respeitá-la, aprender e adaptar-se a ela, mas ao mesmo tempo não nos dissolvemos no novo ambiente. É muito importante preservar a nossa identidade e sentir orgulho da nossa origem e história. Quem não tem história não terá futuro. Quem não tem uma base não poderá construir uma nova vida. Acredito profundamente que a criatividade surge diante das diferenças e que só então a vida se torna cheia de cores. Esta foi a sabedoria de Deus quando Ele nos criou diferentes. As nossas diferenças completam-nos.

O meu marido disse sempre:
Não podes comparar a Síria com Portugal, porque parece que estás a comparar a tua mãe com a tua esposa. Amas mais a tua mãe ou a tua esposa? Ninguém escolhe a sua mãe, mas foi ela que lhe deu a vida. Mas escolhe a sua esposa e dá-lhe o seu coração e o seu amor. A Síria é a minha mãe e Portugal é a minha namorada, é a minha mulher que eu escolho e a quem dei o meu coração.
Portugal deu-nos paz, segurança e um trabalho para podermos viver com dignidade. Isso é algo que vem do coração e ninguém pode controlar.

Ghalia Taki é intérprete e mediadora do Serviço Jesuíta aos Refugiados e voluntária no projeto LAR – Love and respect.
É membro da primeira família síria refugiada que o destino trouxe a Portugal, em 2014.
As palavras aqui publicadas por Ghalia Taki oferecem-nos uma grande sabedoria que a Síria tem cultivado no seu povo. Elas oferecem-nos um excelente testemunho do seu modo de viver, o que poderá ajudar muitos cristãos a repensar o seu modo de olhar a família e a sociedade, quando recusam os altos valores e os bons costumes, considerando-os como antiquados e desprezíveis. É bom ouvir pessoas como Ghalia Taki!
Teresa Ferrer Passos