A realidade é pessoal

A mecânica quântica não é uma expressão estranha que poucos conhecem. Podemos não entender muito bem a teoria e os próprios cientistas reconhecem a dificuldade em usar metáforas simples para a explicar, mas de todas as teorias abstratas esta é, talvez, a que mais tem passado em todos os testes. Porém, ela desafia a visão que temos da realidade e do mundo. E um desses desafios está na existência das próprias coisas. Enquanto não as observarmos, não existem.

Eu estava no 12ºano e soube que no Instituto Superior Técnico havia uma conferência com Denis Sciama, o cosmologista que orientou algumas das mais brilhantes mentes do nosso tempo como Stephen Hawking, Martin Rees e David Deutsch.

Quando cheguei ao IST encontrei o amigo dos escuteiros que me tinha convidado a ir e ele apresentou-me a alguns dos seus colegas. Um deles, o Carlos, a um dado momento vira-se para mim e diz — “sabias que de acordo com a mecânica quântica, neste momento, a tua casa não existe?” — sorri, não percebi patavina, e talvez por isso não me tenha sentido um sem-abrigo, mas fiquei intrigado e jamais esquecerei a sua provocação.

Nos diálogos profícuos que crentes e não-crentes estabelecem, muito se questiona sobre a existência ou não de Deus, remetendo a resposta para algo restrito à experiência pessoal e do foro privado. Porém, a implicação profunda que uma teoria tão testada como a mecânica quântica tem para a nossa percepção da realidade é a da sua vertente personalista. A mecânica quântica introduz a subjetividade na realidade física e o impacte disso sobre a nossa mundividência é tremendo.

Em 1961, o físico Eugene Wigner propôs a seguinte experiência cognitiva: dentro de um laboratório ele tem um amigo que está a monitorizar se um espécime radioativo decai ou não. Isto é, se perde energia e emite radiação. Nesse caso, existe um detetor que emite um flash e o amigo fica a saber do tal decaimento. Depois, Wigner imagina-se fora do laboratório e se houver decaimento, o amigo dele vê o flash e sabe que esse aconteceu, mas para Wigner, o amigo, o espécime radioativo e todo o aparato experimental existem num enublado manancial de estados possíveis. A ideia subjacente é a de que Wigner e o seu amigo ocupam realidades muito distintas. E se o que é verdade para um não corresponde à verdade para o outro, então, em última análise, não existem factos absolutos e isso é desconcertante porque o tapete da realidade absoluta no mundo que permite fazer medições para estabelecer factos é tirado debaixo dos pés.

Tudo não passaria do fruto de uma imaginação fértil se uma equipa de investigadores da Austrália, Ilha Formosa e China não tivessem demonstrado que o paradoxo de Wigner, afinal, é real.

Bamdad Norouzian | Unsplash
Bamdad Norouzian | Unsplash

Um dos modos para resolver esta aparente queda num relativismo absoluto é uma nova visão da mecânica quântica chamada QBism (Cubism) que reconhece e aceita que todo o conhecimento começa com uma “experiência pessoal singular”. Cada um de nós é único e, por isso, faz uma experiência única do mundo dentro e fora de si.

Aquilo em que acreditamos está muito ligado a essa experiência e às interações com outras experiências. E a realidade maior que nos inclui nasce da colisão da imensidão de mini-realidades subjetivas associadas a cada um de nós.

Neste contexto, os nossos sonhos e testemunho pessoal do modo como vivemos cada aspeto da vida do mundo é uma gota essencial de sabedoria que sacia a sede de todo aquele que deseja abrir-se à Realidade maior que nos abraça.

Se a realidade de cada um é única e diferente da realidade de todos os outros, será que a nossa procura das realidades últimas é fútil? Será que o melhor é gozar a vida, já que as vidas não partilham da mesma realidade, em vez de procurarmos juntos o significado das coisas que vivemos? Já não podemos sonhar juntos?

A experiência cristã é a de que a vivência pessoal da realidade é profundamente relacional. A minha realidade nada é sem entrar em relação com a realidade do outro. A ciência ajuda a entender a motivação por detrás do convite de Deus a termos uma mente aberta à surpresa e novidade intrínsecas à Sua Vontade.

A Realidade maior é um sonho que vivemos juntos onde cada momento se experimenta no puro espanto que nasce do entrelaçar de histórias pessoais. É desse entrelaçar que provêm os impulsos que mudam o mundo a partir do interior de cada um de nós.

A realidade não é somente feita de objetos ou sujeitos, mas de relacionamentos entre ambos, onde a incerteza se converte em oportunidade e onde as experiências que parecem opostas são a riqueza escondida que o amor revela.

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