A rapariga no comboio

Ia no comboio sentada no sentido contrário ao da marcha. Depois de três dias de céu nublado e chuva miudinha, finalmente via-se o sol, e mesmo naquela visão um pouco contranatura de uma paisagem que se nos escapa por diante vinda do “ângulo-morto” do ombro, a planura verde, tão diferente da nossa, parecia de postal ilustrado (dos de antigamente, diríamos). 

Sentada nos lugares com mesa, era inevitável cruzar olhares com a pessoa à minha frente. Era uma rapariga de cabelo loiro escuro e fino, com aquela tez clara e rosada típica de alguns ingleses, estaria talvez a meio dos seus vinte anos. Cabelo apanhado, saco de plástico do supermercado Tesco, telemóvel em cima da mesa que partilhávamos. Pegou num livro, primeira página, a estrear a leitura. Talvez atraída pelo belo azul da capa, não resisti e procurei ler o título e, sem querer e sem disfarçar, sorri abertamente. Ela devolveu-me o sorriso. Por um instante não tão breve assim, cúmplice o sorriso, cúmplices as duas. Não houve conversa, nem mais olhares. 

Era um comboio inglês, cruzando a planície da região de Eastmidlands. Eu vinha de uma conferência sobre Jorge de Sena e Sophia de Mello Breyner na Universidade de Nottingham e ia passar um dia de visita a Cambridge, desejosa de conhecer a mítica cidade universitária britânica. A conferência fora um encontro muito proveitoso, pela qualidade e variedade das intervenções, mas sobretudo fora um encontro muito gratificante, pelo entusiasmo dos organizadores, discussão sincera dos temas e amabilidade geral entre os participantes. 

Sob a bandeira desfraldada do Brexit

Manifestação em Londres contra o Brexit, 4 de setembro de 2019. Foto EPA | Will Oliver.
Manifestação em Londres contra o Brexit, 4 de setembro de 2019. Foto EPA | Will Oliver.

Na imediata ressaca das eleições gerais de 12 de dezembro de 2019, que deram a maioria aos conservadores de Boris Johnson sob a bandeira desfraldada do Brexit, alguns dos colegas de universidades do Reino Unido (britânicos ou não) mostravam-se desanimados, incrédulos, zangados mesmo, preocupados com o futuro da Land of Hope and Glory. À mesa do jantar ou nos intervalos para café, professores de Portugal, Espanha, França, Itália, Reino Unido, discutimos o Reino Unido, a Europa, os “desafios” (palavra que é muitas vezes apenas um eufemismo para “problemas”) do futuro próximo: educação, proteção social, imigração, nacionalidade, serviço nacional de saúde, mobilidade, trabalho, etc.

Agora uma confissão: que desânimo! Que desânimo nas vozes dos colegas, cada um com o seu relato mais fundamentado nas dificuldades do que nas soluções; que desânimo perante alguns raciocínios a roçar o egoísmo cómodo de privilegiados que somos; as leituras da realidade baseadas no caso concreto do amigo, do familiar, de si mesmo; que desânimo diante das fundamentações da verdade pessoal e única, ameaçada virtualmente por um medo do outro, afinal sempre mais frágil do que nós.

Deixei-me contagiar pelo ambiente de desilusão e inação, pela sensação de derrota a que logo se segue um encolher de ombros e um certo “recalcamento” do problema global para nos recentrarmos nas questões do nosso quotidiano particular. 

Como não ficar esmagado?

O que fazer com tudo isto? O que fazer perante tudo isto? Como não ficar esmagado diante de argumentos de “cada um por si”, “primeiro os nossos”, “são todos incompetentes”, “a culpa é da esquerda”, “a culpa é da direita”, “não ando a pagar os meus impostos para isto”, “estão a gastar os recursos do SNS”, “há dinheiro para isso mas não há para os idoso”, etc., etc., etc.. Conhecemos bem os desabafos, é provável que já os tenhamos tido, são legítimos porquanto são sentidos. E, não obstante, que fazer perante tudo isto? 

O livro da rapariga

Quando tive oportunidade procurei saber mais sobre o livro que a rapariga do comboio abrira diante de mim: National Populism. The Revolt Against Liberal Democracy, de Matthew Goodwin e Roger Eatwell (Pelican Books, 2018). Fora este o título que nos juntara brevemente e que eu treslera com uma reflexão sobre os perigos do populismo. A crítica do jornal inglês The Guardian não é muito favorável ao livro, ao qual reconhece qualidades, que ficam abafadas por ser uma obra “generosa com os líderes populistas” e “condolente com os seus apoiantes”.

Afinal, a rapariga no comboio não era provavelmente quem eu nela vira. Não era uma jovem cheia de esperança e de garra, informada sobre o futuro da Europa e do mundo, disposta a agir para construir uma sociedade mais solidária, mais aberta, mais compassiva. A rapariga no comboio poderia ser apenas mais uma pessoa à procura de fundamentar escolhas simpatizantes com o populismo. Ou não. Não vou poder saber.

Fico-me com a minha surpresa perante os meus próprios desejos. Desejei ver na rapariga no comboio a resposta valente ao pessimismo e à derrota dos debates informais em Nottingham. Esta preponderância do “eu” não é egocêntrica em sentido clássico, nada tem de vaidade, mas tem tudo de expetativa. Desta vez sem adjetivos. Expetativa.

Um 2020 justo e feliz para todos

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