“A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava, poisada em cima duma mesa, uma maçã enorme e vermelha”, escreve Sophia de Mello Breyner na sua Arte Poética III.
Foi destas palavras que me lembrei ao ver o filme Poesia do sul coreano Lee Chang-dong, de 2010, que foi disponibilizado pela Medeia Filmes, nestes dias da Quarentena. Impossibilitados que estamos de ir ao cinema e ver o que o Cartaz nos traz de novo, proponho um olhar sobre este tão belo quanto triste poema visual.

Poesia pode ser um título bem enganador, sobretudo se somos daqueles que caímos na tentação de pensar que a poesia é uma maneira de fugir da realidade e refugiar-se em pensamentos e palavras bonitas. Mas a verdade é exatamente o contrário, porque ‘o real é a palavra’. Voltemos a Sophia:
Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real… Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo… E é por isso que a poesia é uma moral. E é por isso que o poeta é levado a buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia.
Está aqui, creio, a melhor chave de leitura para o filme em questão. Um filme habitado pela luminosa presença de uma mulher, já avó, que no meio das dificuldades e trabalhos da sua vida mantém uma elegância e uma atitude a que ninguém é indiferente. Ao sair do hospital, onde foi por andar a esquecer-se das palavras que nomeiam as coisas, presencia uma cena terrível: uma mãe, apenas amparada por uma criança, grita e cai por terra, porque a sua filha adolescente se tinha suicidado, atirando-se ao rio. Era assim que tinha começado o filme: um corpo a boiar na água. Mas Mija ainda não sabia o pior: o seu neto, por quem fazia todos os sacrifícios, pertencia ao grupo de rapazes responsáveis por aquele suicídio. Compreender esta dor e esta injustiça passou a ser o seu objectivo, sempre presente no seu olhar intenso, vazio e triste e nas opções que se sente obrigada a fazer.
E onde entra então a poesia do título? Naquele dia, ao regressar do hospital e depois de presenciar a trágica situação daquela mãe, ela vê o anúncio de um curso de poesia. E, apesar de já ter acabado o prazo de inscrição, ela vai participar. Era um desejo antigo. A partir daí, e por indicação do professor, ela vai passar a olhar o mais atentamente possível para toda a realidade que a envolve, com o objectivo de escrever um poema. Vai tomando notas no seu caderninho, mas o poema não aparece, por mais que se esforce e pergunte repetidamente como se faz.
O poema só será escrito quando ela conseguir resolver todas as questões morais que a atormentam e a justiça tiver sido feita: entregar a sua parte do dinheiro para o acordo que tinha sido feito com a mãe da rapariga violada, denunciar o seu neto à polícia para ele enfrentar as consequências do crime que cometera. Tudo feito com uma ritualidade e uma determinação quase litúrgicas. Agora estava livre e o poema – autêntico exercício de empatia – podia, então, ser a palavra capaz de dizer a realidade da vida com toda a compaixão e verdade.
Como um fruto que mostra
Aberto pelo meio
A frescura do centro
Assim a manhã
dentro da qual eu entro
(Sophia de Mello Breyner)
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