Texto de Fernando J Regateiro
A medicina é uma ciência, uma arte e uma praxis destinadas a prevenir, diagnosticar, tratar, definir prognóstico ou proporcionar cuidados paliativos, por motivo de doença ou acidente. Para a Organização Mundial de Saúde, em definição datada de 1948, a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade.
O termo pandemia diz respeito à disseminação de surto de uma doença através de países e continentes. É à luz destes conceitos e da pandemia de COVID-19, uma doença provocada por infeção pelo vírus SARS-CoV-2, que desenvolvo esta reflexão.
Uma parte das pessoas infetadas pelo SARS-CoV-2 não desenvolve sintomas. Nos casos que cursam com sintomas, as manifestações mais frequentes são a febre, a tosse, o cansaço, a dispneia ligeira, o corrimento nasal, a dor de cabeça, a conjuntivite, as náuseas, os vómitos e a diarreia. Em alguns doentes as manifestações são graves ou muito graves, podendo evoluir para a morte.
A cada cidadão cumpre o dever de se assumir como agente de saúde pública, protegendo-se e protegendo o seu próximo. São formas comuns de proteção contra a transmissão da infeção, entre outras, a distância física entre as pessoas, a etiqueta respiratória, o uso de máscara, a lavagem das mãos, o uso de soluções desinfetantes.
Permitam-me recuar umas dezenas de anos, até Joshua Lederberg, Prémio Nobel em Fisiologia ou Medicina, em 1958, para quem “a maior ameaça ao domínio contínuo do homem no planeta é o vírus”.
Porque surge uma pandemia, por vírus emergentes? São várias as razões: a rápida e intensa circulação de pessoas infetadas e de agentes infetantes proporcionada pelo transporte aéreo internacional, a pressão demográfica resultante do aumento das áreas agrícolas e da concentração industrial e dos serviços, a criação de habitats humanos saturados de pessoas, os modestos investimentos feitos na manutenção da saúde e na prevenção e controlo das doenças, as profundas alterações climáticas e dos equilíbrios ecológicos por intervenção e ganância humanas, o contacto próximo das pessoas com animais e a importação de animais para fora dos seus habitats naturais, em condições que permitem que os vírus passem a barreira de espécie e atinjam o homem.
Às instituições de saúde e, nomeadamente aos hospitais, cumpre preparar antecipadamente a resposta e tratar as situações de COVID-19 com prontidão, competência e serenidade. A função de presidente do maior centro hospitalar do País (Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra), em que estava durante a primeira vaga da pandemia, tornou, ainda mais clara para mim, a enorme valia: de um comando centralizado forte mas desmultiplicado pelas hierarquias intermédias e operacionais, para assegurar maior agilidade, rapidez e efetividade; da criação de uma cadeia de comando específica baseada na governação clínica; de um irrepreensível sentido de dever cívico e de pertença dos profissionais, a par de uma disponibilidade sem limites; da cultura de segurança e proteção dos profissionais de saúde; de um planeamento da resposta robusto e feito em antecipação; da adequação prévia, às exigências da COVID-19, de infraestruturas, circuitos de doentes e profissionais, espaços de internamento e urgência e resposta laboratorial; da prontidão e eficácia com que se combatem surtos internos; e, obviamente, da necessidade de continuar a assegurar a resposta a doentes não-COVID que exijam tratamento inadiável.
A experiência recolhida também evidenciou vantagens e aprofundou certezas decorrentes: de mais autonomia gestionária; da entrega de medicamentos a doentes crónicos de ambulatório hospitalar, em farmácia de proximidade, evitando a sua deslocação regular ao hospital; das consultas em regime não presencial, sempre que não haja prejuízo para o doente; da disseminação da telemedicina para suporte de consultas não presenciais, visualização de exames e análises, ou monitorização de doentes crónicos; da realização, na proximidade da residência dos doentes, de exames ou análises prescritos por médicos hospitalares; do reconhecimento e valorização do médico de família, como “gestor” da saúde e dos episódios de doença dos seus utentes; do acesso aos cuidados hospitalares por referenciação; da integração dos cuidados de saúde.
A vida, como a conhecíamos antes da pandemia de COVID-19, mudou
Globalmente, a humanidade vai ter de viver com as consequências duras da pandemia, a nível individual e da sociedade. Onde vivíamos iludidos com as certezas de que o amanhã só poderia ser melhor do que hoje, instalou-se, com rudeza, a incerteza, com a qual temos de aprender ou reaprender a viver. O homem, como ser aprendente, terá de exercitar e concretizar as aprendizagens decorrentes desta pandemia.
Hoje, é mais forte a necessidade de cada cidadão identificar as suas razões de esperança e de as partilhar com o outro. Hoje, os afetos e o relacionamento com familiares e amigos contam ainda mais. E também conta mais a necessidade moral de fazer escolhas entre o que é essencial e o que é supérfluo.
E ressalta a necessidade de uma reorganização social, da economia e da política, em bases diferentes, e uma evolução emergente dos vetores que confluem no eixo da roda do poder e no seu exercício.
A pandemia relevou, ainda com mais veemência: o valor da cooperação, em vez do trabalho isolado – “quem quer chegar depressa corre sozinho, quem quer chegar longe, corre acompanhado”; da presença das lideranças no terreno, lado a lado com os profissionais, onde as coisas acontecem; de um decidir e agir sustentados em visão clara e determinação, sólidos saber e experiência, mas também bom senso e pragmatismo; de decisões centradas no melhor interesse do doente; da certeza sobre a finitude dos recursos; do valor dos espaços, do tempo, das pessoas e da vida.
A pandemia reavivou e fortaleceu o sentido profundo da vida como o valor nuclear humano mais básico e universal, só por si!

Fernando J Regateiro é professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Presidiu à administração dos Hospitais da Universidade de Coimbra e à Administração Regional de Saúde do Centro.
É autor do Manual de Genética Médica e co-autor de mais de uma quinzena de livros, tendo publicado centenas de artigos científicos.
Foi membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e, durante vários anos, colaborador assíduo do Mensageiro de Santo António.
Foto da capa: Laurence Geai/World Press Photo 2021
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