A justiça do nome do pai

Há livros que nos chamam desde o primeiro momento e cuja voz ficamos a ouvir baixinho, a meia-distância, pelas palavras de outros.

Desde esse primeiro momento, celebrei e acompanhei o percurso do segundo livro da jornalista Catarina Gomes (Lisboa, 1975), Furriel não é nome de pai, publicado, em maio de 2018, pela Tinta da China.

Catarina Gomes. Foto de Daniel Rocha.
Catarina Gomes. Foto de Daniel Rocha.

Por várias razões, aliás, mas sobretudo porque sigo há vários anos o percurso da Catarina, minha colega de faculdade, e porque, entre as suas investigações, um dos temas que tinha tratado e que eu seguira com mais atenção fora o dos filhos que os militares portugueses deixaram na guerra colonial – sintetizo-o usando o subtítulo do livro de que agora falo.

Todavia, só em novembro li – num serão – o livro da Catarina. Tinha-o comprado, já o emprestara, mas ainda continuava apenas a chamar-me baixinho, a meia-distância, da mesa de apoio do sofá. Registo que o li de empreitada, não para autoelogiar a minha velocidade de leitura, mas sim como primeira prova da impressão que o livro me deixou: é um texto de um só fôlego, de uma dignidade intrínseca ao conteúdo e à expressão, um texto de testemunho e homenagem, exemplo ético do jornalismo comprometido com a vida real de pessoas que não são os protagonistas habituais da atualidade.

Tanto sofrimento, uma só procura: o pai

Há uma angústia que se nos vai instalando nos olhos e no peito, que não é paralisadora, nem deve nada ao sentimentalismo fácil, mas antes nasce da empatia, da capacidade que a autora tem de nos colocar junto do outro.

Estamos demasiado afastados no tempo e na geografia, mas Catarina Gomes coloca-nos ao lado desses homens e mulheres que são órfãos à força, devido à ausência dos pais. Esses homens e mulheres são os náufragos das águas tumultuosas do passado colonial, que continua a arrastar até à praia do presente, memórias incertas e desorganizadas das guerras, do medo, da perseguição, da violência, da diferença, do castigo, da mentira e do silêncio. Tanto sofrimento, uma só procura: o pai.

Furriel não é nome de pai

Furriel não é nome de pai é um livro contido, espartano em adjetivos e prolífero em perguntas. Um livro que não julga, mas que questiona sem meias palavras, até porque se funda na pergunta mais importante de todas, anterior ao livro: quem sou eu? ‘Resto de tuga’, ’filho do vento’, ‘filho do colono’, gente ‘no meio da barcaça’, ‘português suave’…

Abandonados, estigmatizados, brancos (!)… os filhos que os homens militares portugueses deixaram na Guiné, em Angola ou em Moçambique, “têm uma vida inteira de discriminação como prova” dessa paternidade e um futuro inteiro marcado pela incompletude, pela dor, pela procura do pai e de um lugar ao qual pertencer – talvez Portugal, país-promessa.

Estes filhos “são coisas que acontecem”

Catarina Gomes, Furriel não é nome de pai, Tinta da China.
Catarina Gomes, Furriel não é nome de pai, Tinta da China.

O livro de Catarina Gomes é um livro de pós-reportagem, em que a jornalista acompanha histórias com que se tinha cruzado no seu trabalho no Público e que habitualmente não cabem nas páginas breves e efémeras do jornal diário. Não é uma monografia académica, embora venha a ser certamente objeto de trabalho académico; não é a descrição sentimental de sofrimentos individuais, embora os haja; rigorosamente contextualizado, não é porém um livro de História; nem é de histórias, apesar da exímia mão narrativa que conduz o relato.

O livro de Catarina Gomes é um livro que traz para o centro da nossa atenção um tema que está presente nas “conversas de caserna”, em que estes filhos “são coisas que acontecem”.

A autora mostra-nos os que ficaram por lá e que são vistos de cá como algo bem longe, bem irreal, bem diáfano, sem contornos definidos. É uma forma extrema de invisibilidade desde Portugal, que contrasta com a extrema forma de visibilidade em África, condenados pelas suas evidentes peles claras (belíssima, a capa do livro, de V. Tavares, com uma ilustração que mostra o tom de pele moreno do bebé, ao colo da sua mãe negra).

Quantos de nós, sozinhos ou nas nossas famílias, pensámos já neste assunto? E o país? Qual o dever histórico de Portugal em relação a estes filhos de portugueses?

Os quatro capítulos do livro apresentam histórias exemplares, inusitadamente disfóricas: a história do filho do furriel que, afinal, não é o nome do pai; a história da tia que encontrou o sobrinho; a história da irmã que descobriu os gémeos do pai.

São, maioritariamente, relatos de derrota: medo, discriminação, desamparo, desnorte, anseios impossíveis de saciar, incerteza, incomunicabilidade.

O último capítulo conta a história de António, que procurava – e encontrou – o filho que deixara em Angola.

Esta história, porém, ainda que seja singular e nada tenha de novela de final feliz, deixa-nos uma esperança de justiça.

A única que os filhos pedem: a justiça do nome e do abraço do pai.

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