Os evangelhos sobre o Natal de Jesus, há dois mil anos, também contam a vida na nossa época. Esses textos falam-nos de uma gravidez suspeita, de um noivo desconfiado que vence a sua humilhação, de uma jovenzinha que canta as maravilhas de Deus a acontecer na pobreza da sua condição. Narram o nascimento de uma criança, tendo como berço uma manjedoura. Informam que uns pastores, socialmente desprezados, foram os primeiros a adorar o Deus menino. Relatam a história de sábios que vieram de longe para se ajoelhar diante de um recém-nascido. Descrevem um massacre de crianças e uma emigração forçada, à procura de asilo.
As narrativas evangélicas do nascimento de Cristo não nos amarram a uma história longínqua. Elas evocam a presença de Deus nas famílias irregulares mal acolhidas nas paróquias, nas vítimas dos exílios e migrações forçadas, na multidão dos refugiados que encontram as portas fechadas.
Precisamos de reler com as lentes do Natal as realidades do nosso tempo
O assombroso espanto perante um Deus que vem viver entre nós, frágil como nós, nada tem a ver com aquilo que o Papa designa como “os lugares comuns do Natal falso e adocicado” das nossas sociedades de consumo. O presépio desconstrói as imagens de um Deus distante, dominador e justiceiro, ao apresentar-nos um Deus que vem conhecer por dentro as feridas da humanidade.
O presépio anuncia-nos uma salvação em contraciclo com os critérios humanos do sucesso. A obsessão do êxito, a fixação nos interesses individuais e nos padrões do conforto, a exaltação dos “heróis” contemporâneos, no mundo do desporto, do cinema e da política, são idolatrias procuradas como garantia de uma salvação totalmente oposta à loucura do amor de Deus, presenciado nas imagens do presépio.

Os textos bíblicos usam a mesma palavra para exprimir a glória de Deus e a glória do homem, como forma de nos revelar que a honra de cada ser humano é infinita. Na madrugada do nascimento de Cristo, os pastores ouviram a voz dos anjos a proclamar a glória a Deus nas alturas e a paz aos homens na terra. Na escuridão daquela noite, o céu abriu-se para anunciar aos mais pobres dos pobres, “uma grande alegria que será para todo o povo”.
É um grande desafio acreditar nesta alegria, quando vemos tantas pessoas humilhadas pela miséria e quando estamos a viver coletivamente momentos de grandes interrogações e de profundas inquietações e incertezas.
Temos diante dos olhos, por exemplo, as desumanidades da guerra na Ucrânia e em muitos outros locais, semeando pelo mundo a morte e a destruição, e as alterações climáticas cada vez mais evidentes, com a nossa a Europa a sofrer este ano o verão mais quente da história e a pior seca de meio milénio.
As incertezas e as sombras desta hora poem à prova a solidez da nossa Esperança, mas quanto mais a dureza da nossa realidade se afasta do horizonte de justiça e de paz anunciado pelo nascimento de Cristo, mais é preciso anunciá-lo. Foi depois da dureza do exílio do povo israelita que os textos bíblicos mais desenvolveram o anúncio da vinda de um messias, que haveria de inaugurar um tempo novo, finalmente justo e bom.
Precisamos de acreditar nessa verdade, quando a história presente parece mostrar o contrário. É nas experiências de exílio na nossa vida individual e coletiva que mais falta faz proclamar sonhos maiores, capazes de manter vivo o futuro, para não corrermos o risco de ficarmos totalmente esmagados pelo presente. Se a luz que interiormente nos alumia se tornar fosca, também definharão as energias mobilizadoras para a construção de um mundo renovado, na linha da mensagem de Jesus.
Aquilo que nos conta o Natal é a história de uma grande luz “sobre os que habitavam na sombra da morte” (Mt 4,16; cf. Is 9,2). A Esperança é essa pequena voz que nos sussurra baixinho que nada está perdido e que nos faz ver que o mundo é muito mais do que uma aventura fatalista a caminho da desgraça. Diz-nos Teilhard de Chardin que “quando Cristo apareceu nos braços de Maria, o Mundo, por Ele e com Ele, elevou-se à transcendência”.
Num belo texto poético, S. João da Cruz lembra-nos que “a luz que nos guia é a que está no coração”. Seja essa a luz a alumiar os nossos passos dispersos e inseguros, para que o nosso Natal possa ser celebrado como a “noite amável, mais que a alvorada”, cantada no mesmo poema de S. João da Cruz.
Foto da capa: Migrantes num acampamento na fronteira entre a Bielorrússia e a Polónia. A foto é de novembro 2021, mas embora esquecidos pelos media, centenas de refugiados que desejam obter asilo na União Europeia continuam presos na fronteira enfrentando as baixas temperaturas.
Foto EPA/RAMIL NASIBULIN/BELTA.
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