A imensidão de Deus na fragilidade humana

Os evangelhos sobre o Natal de Jesus, há dois mil anos, também contam a vida na nossa época. Esses textos falam-nos de uma gravidez suspeita, de um noivo desconfiado que vence a sua humilhação, de uma jovenzinha que canta as maravilhas de Deus a acontecer na pobreza da sua condição. Narram o nascimento de uma criança, tendo como berço uma manjedoura. Informam que uns pastores, socialmente desprezados, foram os primeiros a adorar o Deus menino. Relatam a história de sábios que vieram de longe para se ajoelhar diante de um recém-nascido. Descrevem um massacre de crianças e uma emigração forçada, à procura de asilo.

As narrativas evangélicas do nascimento de Cristo não nos amarram a uma história longínqua. Elas evocam a presença de Deus nas famílias irregulares mal acolhidas nas paróquias, nas vítimas dos exílios e migrações forçadas, na multidão dos refugiados que encontram as portas fechadas.

Precisamos de reler com as lentes do Natal as realidades do nosso tempo

O assombroso espanto perante um Deus que vem viver entre nós, frágil como nós, nada tem a ver com aquilo que o Papa designa como “os lugares comuns do Natal falso e adocicado” das nossas sociedades de consumo. O presépio desconstrói as imagens de um Deus distante, dominador e justiceiro, ao apresentar-nos um Deus que vem conhecer por dentro as feridas da humanidade.

O presépio anuncia-nos uma salvação em contraciclo com os critérios humanos do sucesso. A obsessão do êxito, a fixação nos interesses individuais e nos padrões do conforto, a exaltação dos “heróis” contemporâneos, no mundo do desporto, do cinema e da política, são idolatrias procuradas como garantia de uma salvação totalmente oposta à loucura do amor de Deus, presenciado nas imagens do presépio.

Adoração ao Menino
Pintura em óleo sobre tela,
de Gerard van Honthorst (1620)
Galleria degli Uffizi, Florença,
Foto Web Gallery of Art, Commons Wikimedia.
Adoração ao Menino Pintura em óleo sobre tela, de Gerard van Honthorst (1620) Galleria degli Uffizi, Florença, Foto Web Gallery of Art, Commons Wikimedia.

Os textos bíblicos usam a mesma palavra para exprimir a glória de Deus e a glória do homem, como forma de nos revelar que a honra de cada ser humano é infinita. Na madrugada do nascimento de Cristo, os pastores ouviram a voz dos anjos a proclamar a glória a Deus nas alturas e a paz aos homens na terra. Na escuridão daquela noite, o céu abriu-se para anunciar aos mais pobres dos pobres, “uma grande alegria que será para todo o povo”.

É um grande desafio acreditar nesta alegria, quando vemos tantas pessoas humilhadas pela miséria e quando estamos a viver coletivamente momentos de grandes interrogações e de profundas inquietações e incertezas.

Temos diante dos olhos, por exemplo, as desumanidades da guerra na Ucrânia e em muitos outros locais, semeando pelo mundo a morte e a destruição, e as alterações climáticas cada vez mais evidentes, com a nossa a Europa a sofrer este ano o verão mais quente da história e a pior seca de meio milénio.

As incertezas e as sombras desta hora poem à prova a solidez da nossa Esperança, mas quanto mais a dureza da nossa realidade se afasta do horizonte de justiça e de paz anunciado pelo nascimento de Cristo, mais é preciso anunciá-lo. Foi depois da dureza do exílio do povo israelita que os textos bíblicos mais desenvolveram o anúncio da vinda de um messias, que haveria de inaugurar um tempo novo, finalmente justo e bom.

Precisamos de acreditar nessa verdade, quando a história presente parece mostrar o contrário. É nas experiências de exílio na nossa vida individual e coletiva que mais falta faz proclamar sonhos maiores, capazes de manter vivo o futuro, para não corrermos o risco de ficarmos totalmente esmagados pelo presente. Se a luz que interiormente nos alumia se tornar fosca, também definharão as energias mobilizadoras para a construção de um mundo renovado, na linha da mensagem de Jesus.

Aquilo que nos conta o Natal é a história de uma grande luz “sobre os que habitavam na sombra da morte” (Mt 4,16; cf. Is 9,2). A Esperança é essa pequena voz que nos sussurra baixinho que nada está perdido e que nos faz ver que o mundo é muito mais do que uma aventura fatalista a caminho da desgraça. Diz-nos Teilhard de Chardin que “quando Cristo apareceu nos braços de Maria, o Mundo, por Ele e com Ele, elevou-se à transcendência”.

Num belo texto poético, S. João da Cruz lembra-nos que “a luz que nos guia é a que está no coração”. Seja essa a luz a alumiar os nossos passos dispersos e inseguros, para que o nosso Natal possa ser celebrado como a “noite amável, mais que a alvorada”, cantada no mesmo poema de S. João da Cruz.

Foto da capa: Migrantes num acampamento na fronteira entre a Bielorrússia e a Polónia. A foto é de novembro 2021, mas embora esquecidos pelos media, centenas de refugiados que desejam obter asilo na União Europeia continuam presos na fronteira enfrentando as baixas temperaturas.
Foto EPA/RAMIL NASIBULIN/BELTA.

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