A Humanidade que se segue, com o cardeal José Tolentino Mendonça.
Partilhamos convosco a entrevista de ontem de Pedro Santos Guerreiro ao Cardeal Tolentino Mendonça, no âmbito dos diálogos promovidos na Fundação Francisco Manuel dos Santos.
“A pandemia foi o tirar do véu, o tirar do filtro. Hoje vemos muito melhor”, explica nesta conversa inédita o cardeal José Tolentino Mendonça, salientando que a crise criada pelo coronavírus nos obrigou a ter um novo olhar na relação com os outros e com nós próprios. “Os idosos são as primeiras vítimas. São um tesouro a que só damos valor quando nos fazem falta”, alerta, acrescentando que esta é uma oportunidade de refazermos essa ligação perdida. “Esta é uma hora de grande desafio à imaginação”.
Algumas frases/ideias anotadas e sublinhadas pelo Pe. Nuno Santos.
Uma coisa boa desta pandemia foi a evidência da paixão que os cidadãos têm pela vida. A economia passou para segundo plano. É um momento muito importante sentir que a vida seja uma prioridade.
Podemos não estar todos no mesmo barco, mas estamos todos debaixo da mesma tempestade.
É necessário transformar esta fraqueza numa força. Não é fácil, mas é possível. Podemos fazer surgir um desejo de renascer, com melhores critérios e melhores formas de vida.
A qualidade das nossa perguntas alterou-se. Hoje nós fazemos perguntas muito mais sérias. Acerca do sentido da vida, do que é importante, do que deve ser relativizado, o que é importante, porque vivemos, que sentido a vida faz…
A solidão queima-nos, o grau de exposição à solidão tem que ser bem acompanhado porque senão acaba por ser uma força de morte
A pandemia por um lado traz coisas novas, por outro é um acelerador, faz-nos ver coisas que já estavam na sociedade – [por exemplo] a situação dos lares (uma espécie de parque de estacionamento à espera da morte) – muitos lares sem condições… porque não damos valor à vida humana.
A pandemia é o retirar do véu, tirar o filtro. Hoje vemos muito melhor.
Um termómetro ético. O modo como. Nos relacionamos com os velhos/idosos tem a ver como valor que lhes damos. Em Portugal é cerca de ¼ da população.
[Entrevistador Pedro Santos Guerreiro – Quando falamos dos mais velhos parece que estamos a falar de um sub-grupo, deles e não de nós… mas depois estamos a falar dos nossos pais e dos nossos avós].
Estamos a falar das nossas raízes, de quem nos gerou, do dom… mas também do nosso destino.
Onde há um problema, há uma oportunidade. Temos que pensar o que significa a terceira idade.
Os idosos são uma reserva exaurível de memória, de conhecimento, de emoções de vida… Não contar com isso é viver em perda, é vivermos à superfície.
[A propósito dos mais velhos] Esta hora é um grande desafio à imaginação. É hora de encontrarmos modelos diferentes, é hora para arriscamos novos modelos e não simplesmente cruzarmos os braços
Deixámos de ligar aos mais velhos quando desligámos do valor que eles têm. Numa sociedade como a nossa damos valor a quem produz e a quem consome. Eles são os que vão ficando de fora. Como temos cada vez menos tempo, porque temos de produzir mais para consumir mais… Mas pode haver outras formas de viver a vida. Precisamos de criar modelos de integração.
Os idosos são mais frágeis, mas também são resilientes; andam devagar, mas pensam muito de depressa… não têm falhas no sentimento. São grandes transmissores de vida. Podemos estar diante de uma grande oportunidade de reconciliação com os idosos.
[uma citação de um livro de Tolentino – A velocidade com que vivemos impede-nos de viver].
Há dimensões interiores a que só chegamos através do sofrimento. O sofrimento traz conhecimento, traz ensinamento. Há dimensões do conhecimento a que só chegamos através do sofrimento… é um mistério, é um enigma. No fundo é quando nos reconciliamos com a nossa própria fragilidade que tocamos a profundidade da nossa existência, se não somos capturados pelas coisas mais imediatas, pelo que mais brilha, pela espuma dos dias…
A esperança de vida aumentou, mas é importante que a esperança de vida não seja apenas cronológica, mas que seja participação na sociedade e valorização da sua missão, temos que pensar políticas que os coloquem como atores e cidadãos de pleno direito. A vida não acaba quando termina a chamada vida ativa.
O que está em causa não é apenas a nossa comunidade, mas a consistência dos nossos estilos de vida.
A questão da ecologia e da consciência ecológica exige um outro olhar, um novo equilíbrio. A ecologia não é apenas uma bandeira verde mas também humana. O grito da terra é também o grito da pessoa humana, dos mais pobres dos mais vulneráveis… Precisamos de mudar e cada um de nós tem muito poder. Cada um de nós não pode abdicar do seu papel.
Não pode ser apenas um regresso ao mundo que deixámos. É uma ilusão nós pensarmos que vamos voltar ao mesmo mundo. Esse mundo já não existe. Esse mundo passou. Vamos entrar num mundo que é aparentemente o mesmo, mas que é muito diferente. Muito diferente em nós próprios e no mundo em si.
Há um a fronteira invisível que foi interiorizada, há uma barreira invisível dentro de nós. O mundo mudou porque as crises se vão agudizar: crises no trabalho, crises sociais, crises financeiras, crises económicas…Há um agudizar-se de várias crises e isso vai exigir uma energia, um pensamento, uma ética que é preciso ser testada.
Precisamos de ser criativos neste mundo e encontrar novas soluções. Não pensarmos a partir do esquema do mundo que deixámos, mas pensarmos em novas soluções e afirmarmos neste momento grandes valores. Porque os grandes valores não são para ser vividos e praticados em tempos fáceis. Os valores são para ser testados nos momentos difíceis.
[Entrevistador – Qual é o papel da Igreja?]
Por um lado, a Igreja precisa de se alimentar e alimentar a dimensão espiritual, por outro, precisa de ‘saciar a sede dos últimos dos últimos’. Mas não é um ou, ou. Não é ou assumimos esta dimensão espiritual e contemplativa ou tornamo-nos um catolicismo social. Um catolicismo vital alimenta-se da palava, da mística, da contemplação…
Passa por dar pão a quem tem fome, vestir quem está nu, dar água a quem tem sede… e tudo o que essa linguagem parabólica representa
[Entrevistador – Morrem em média em Portugal cerca de 300 pessoas por dia. Como é que se consegue lidar com o luto num momento em que estamos impedidos de fazer essa última despedida]
Esse luto que as famílias não puderam fazer, é uma dor que continua viva, é como se os mortos não tivessem sido sepultados… Essa é uma realidade das nossas sociedades. É preciso encontrar forma de poder fazer uma celebração mesmo que pequena. E depois pensarmos como sociedade também nos mortos. Talvez declarar o luto nacional numa data mais adiante e fazer alguma celebração como coletividade para ajudarmos a sepultar os nossos mortos.
A nós que vivemos esta crise trazemos dentro de nós este trauma, quer como indivíduos, quer como sociedade. O que vamos fazer com este trauma? Vamos viver a vida apaixonadamente e com outra resiliência, maturando as nossas escolhas e ampliando os nossos horizontes? Ou vamos fugir deste trauma e vamos tentar uma enésima forma de ‘escapismo’ que é voltar ao lufa-lufa de um presente que nos engula e nos leve, sobretudo, para um estilo de vida em que a vida nunca se pensa até ao fim, nunca se reflete nas suas últimas questões, nas suas últimas consequências.
Possivelmente o grande dom que esta pandemia nos trouxe, trouxe-nos perguntas, trouxe-nos um capital de perguntas que podemos colocar hoje com outra verdade e com outra autenticidade, quer como comunidade, quer individualmente.
Acredito muito na força da vocação individual. A diferença não se faz apenas pelo número, a diferença faz-se muitas vezes a começar por uma pessoa. Uma pessoa é capaz de transformar o mundo. Todos nós, com pequenas ações, podemos transformar o mundo.
O Papa sozinho à chuva, na Praça de S. Pedro, que ele quis vazio, quis ficar ali a dialogar com o vazio. É uma daquelas imagens que não vamos esquecer. Naquele momento ele humanizou o vazio e tornou o vazio matéria de um diálogo maior que não acaba apenas na fronteira do visível.
Essa ligação com as igrejas fechadas, o vazio das igreja é um património. Não podemos fazer de conta que o vazio se vai embora quando as igrejas se voltarem a encherem. Aquele vazio já não se vai embora. Temos que trabalhar aquele vazio.Nós seremos o pais que se segue nós seremos e fazemos o pais que se segue.