Uma reflexão de tempo comum
Deus tanto vive nos que acreditam nele, como nos que desejam que ele exista e, ainda, nos que firmam na dúvida a sua crença. Deus talvez exista e é o bastante para que ele deslumbre o Infinito… E há ainda os parentes de Dom Quixote, que obrigam Deus a existir.
Teixeira de Pascoaes
Longo tempo de mãos dadas com a teologia e com a metafísica, a filosofia cedeu frequentemente à tentação da conceptualização universalizante e absolutizante de praticamente tudo quanto tentou compreender. No que aqui nos diz respeito, foi essa tendência que inquinou parte substancial da reflexão teológica sobre a fé e a encerrou na maniqueia dicotomia entre a alma e o corpo, primeiro, e entre a razão e a emoção, mais recentemente.
Mas essa tradição que, desde a Antiguidade aos nossos dias, padece de uma bidimensionalidade de percepção, cedeu à tentação de valorar, por oposição polar, o que à custa de muito esforço conseguiu captar: há realidades visíveis e invisíveis, inteligíveis e sensíveis, racionais e irracionais, espirituais e corpóreas. Em virtude desse esforço logrado, instituiu-se a separação, levada ao seu expoente máximo com o racionalismo e com o idealismo, entre a razão e o que ela não é, isto é, o mito, a sensação e o sentimento.
Assim se instituiu que à verdade somente se chegasse por via da razão e esta o menos possível toldada pela densidade da massa corpórea. Se a primeira era luminosidade e transparência, a segunda era obscuridade e opacidade. Nesse sentido, tudo o que se sugerisse por via dessa obscura e opaca realidade – o corpo nas suas sensações e emoções – valorava-se como enganador.
Visão ou Memória
Não muito distante desse mundo luminoso da Grécia dos filósofos, havia um outro cuja preocupação fundamental repousava sobre a experiência do tempo enquanto relação, mais do que sobre a compreensão dos mecanismos da natureza (physis) ou da razão (logos) da sua ordem (cosmos). Para a Grécia dos filósofos, grosso modo, a preocupação era a visão clara (eidos) da verdade (aletheia). Para o povo de Israel, que se fez e compreendeu na suspensão de uma Promessa e na consciência do irreversível, o importante era a memória.
Essa memória não era a anamnese platónica, que recordava de um outro mundo feito de ideias a autenticidade no inautêntico, uma espécie de repetição monótona do mesmo e, ainda por cima, deficiente. Para essoutro povo, o de Israel, a memória era feita de pó e sangue, para lembrar a metafórica poeira de que Deus se serviu para falar a Abraão da grandeza de uma descendência tão incontável quanto o pó da terra (cf. Gn 13, 14-16).
E porque fundado sobre uma escuta primeira, esse povo viveu da escuta e da reverberação na memória, transmitida de geração em geração: “Escuta, Israel! O Senhor é nosso Deus; o Senhor é Único. Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças. Estes mandamentos que hoje te imponho estarão no teu coração” (cf. Dt 6, 4-6). A Grécia dos filósofos queria ver, Israel queria fundamentalmente ouvir.
Do ponto de vista dos sentidos ou do seu valor extrínseco, a audição encaminhava a Palavra (não logos mas dabar) para o centro relacional do interpelado. A cultura hebraica chamou-lhe coração (lêb, lebah), porque aí intuiu residir o núcleo fundamental do ser humano na sua complexidade e pluridimensionalidade. No coração e na memória nele gravada, também liturgicamente (zikkaron), Israel intuiu que o importante era a escuta da palavra criadora e interpeladora da relação no princípio de tudo: “Deixa a tua terra, a tua família e a casa de teu pai e vai para a Terra que eu te indicar” (cf. Gn 12, 1). Para esse povo, feito de terra e espera, de memória e Promessa, o importante era não esquecer e assim permanecer na confiança. Por isso, se sabedoria havia era a do coração ou da reverberação nele de uma palavra outrora escutada e não a visão de uma ideia repetida e cristalizada numa espelhada sombra, como na platónica alegoria da caverna. Para Israel, a fé, mais do que conhecimento, era possibilidade relacional e a confiança histórica, a sua condição.
A cultura que nos faz e nos diz é constituída, porém, de um cruzamento destes dois registos: o grego e o hebraico. Constituídos a um tempo de curiosidade visual e sedução auditiva, prevaleceu porém na nossa estrutura o desejo da visão.
Todo o conflito que entretanto se fez sentir, desde a Antiguidade aos nossos dias, resultou desta polarização, mas fundamentalmente da primazia da visão sobre a audição e não tanto da razão sobre a fé ou sobre a emoção. Razão e emoção seriam, desde uma equilibrada teologia, complementares e articuláveis na própria fé.

A história da espiritualidade cristã é testemunho desse movimento paradoxal, e aparentemente contraditório, de uma revelação que se dá por via do escondimento. Todavia, é precisamente em razão desse paradoxo que se pode afirmar que o Deus absconditus é o Deus que se revela no escondido, no silêncio e na ausência. Por isso, tem razão Pinharanda Gomes ao dizer que “num movimento de horizontalidade, ou numa ascese de verticalidade, as interrogações humanas não deixam de se encontrar com os insolúveis mistérios da imensidade e da eternidade”. Dito ao contrário, porém, não é menos verdadeiro: na inefabilidade do mistério divino, habitam as interrogações humanas mais profundas. Para a tradição cristã, esse silêncio e essa ausência são lugares de uma discreta revelação. O espaço vazio do Gólgota, onde se afirma a ausência e o silêncio, funciona como uma caixa-de-ressonância por onde o sopro ou o vento (ruah) do amor divino pode ressoar na história. O que acontece na Cruz não é, nem pode ser, a ara de um sacrifício absolutamente necessário de uma vítima expiatória fatalmente destinada ao derramamento de sangue. Isso seria tragédia, como a grega. O que acontece no Gólgota e na Cruz é uma morte violenta e criminosa de um homem que intimamente percebeu que o Deus de Israel é Abba.
Ao longo de toda a sua vida pró-existente e não somente na suspensão de sexta-feira santa, esvaziou-se (kenosis) da lógica do poder e da violência. E foi assim que se foi transfigurando na sua auto-consciência filial, a tal ponto de, no silêncio e na ausência, ser capaz de funcionar como caixa-de-ressonância desse (e)vento do Espírito. No abandono, que é património comum da humanidade, pôde assim ecoar sacramentalmente a voz originária do amor do seu Abba.
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